Persiste em muitos tasqueiros a ideia de que o Futebol Feminino é uma seca, de fraca qualidade e com muito poucas possibilidades de se tornar um desporto de massas ou, no mínimo, comercialmente sustentável. Convém esclarecer que essa ideia parte de um pressuposto assente numa realidade que já não vinga em muitos dos países que se tornaram os mais evoluídos no desenvolvimento deste desporto no feminino. É, por isso, um preconceito que, embora cada vez menos se sustente na observação dos factos, ainda encontra eco na realidade retrógrada que se vive em muitos países.

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Há cerca de 2 décadas que nos Estados Unidos e no Canadá, nos países nórdicos europeus (em que incluo a Alemanha) ou no Brasil, na China e no Japão o Futebol Feminino se vem afirmando como um Deporto em franco crescimento. Nos últimos anos, por força de uma muito maior afirmação do papel da Mulher nas sociedades modernas, outros países reconheceram ao Futebol Feminino um enorme potencial de crescimento e investiram no seu desenvolvimento. Foi assim na França, na Holanda, na Inglaterra, na Itália e em Espanha. Um processo similar acontece na América do Sul e Central onde países como o México e a Argentina iniciam uma maior aposta na vertente feminina do Futebol.

Todos estes últimos países são nações com uma forte tradição no futebol Masculino. De facto, entre eles apenas o México não conquistou uma grande competição de seleções nacionais, mas já hospedou por 2 vezes a fase final do Mundial. Em quase todos eles a opção foi apostar na profissionalização dos principais campeonatos dos seus países. Vejamos alguns dos exemplos mais notórios de desenvolvimento do profissionalismo no Futebol Feminino.

1 – INGLATERRA (55,98 Milhões de habitantes)
existem 2 campeonatos: Barclay’s WSL (Women Super League), primeira “divisão” em que todos os Clubes têm de obter licenciamento profissionals, patrocinada pelo Banco Barclay’s neste ano e nos 4 seguintes. É uma competição a 2 voltas, em que competem 12 equipas, boa parte delas dos maiores Clubes da Premiereship Masculina (Arsenal, Chelsea, Manchester United, Manchester City, Tottenham, Everton, West Ham, Brighton, Reading, Aston Villa, Birmingham e Bristol); Clubes como o Lecester e o Liverpool estão a competir na divisão secundária, onde não existe obrigatoriedade de completa profissionalização e que junta a estas mais 9 equipas (Sheffield United, Durham, London City Lionesses, Londons Bees, Lewes, Blackburn Rovers, Charlton, Crystal Palace e Coventry United). Existem ainda como competições: a Taça da Liga, patrocinada pela Continental Tyres, em que participam as 23 equipas das duas principais divisões, numa 1ª fase em 5 grupos de 4 equipas e um 6º de 3, que apura para os quartos de final e sucessivamente; e a Taça de Inglaterra, por eliminatórias em que participam as equipas seniores das 3 divisões nacionais, patrocinada pela Emirates. Mesmo antes do grande boom de Clubes, a FA (Football Association), Federação Inglesa, a mais antiga no mundo do futebol, garantia condições excepcionais de financiamento das competições através do aliciamento de grandes sponsors. A criação de quadros competitivos equilibrados com regras de licenciamento dos Clubes profissionais e semi-profissionais muito claras, ajudaram ao resto; mas aí não tiveram que inventar quase nada … bastou-lhes inspirarem-se nos modelos já há muito adotados nos E.U.A país onde o Futebol Feminino está mais implantado e desenvolvido.

2 – FRANÇA (66,99 Milhões de habitantes)
Também com 2 Campeonatos profissionais ou semi-profissionais, em que a Division 1, patrocinada pela Arkema, conta com 12 equipas, com destaque para o Lyon e o PSG, mas onde também militam Bordéus, Montpellier, Guingamp, Fleury 91, Paris FC, Dijon, Stade de Reims, Soyaux, Issy e Le Havre. Na Division 2, militam, entre outros, clubes como o Brest, o Lille, o Metz ou o Nantes no Grupo A e o Saint-Étienne, o Olimpique Marseille ou o Nice no Grupo B. Atestando a qualidade dos campeonatos franceses, o Lyon (Olympique Lyonnais) é, atualmente o penta campeão europeu de Clubes. A maior aposta da Federação francesa foi no apoio aos Clubes para a criação de infraestruturas e condições de Formação.

3 – HOLANDA (17,28 Milhões de habitantes)
a Eredivisie feminina holandesa (o principal campeonato) é disputado por 8 Clubes a 2 voltas (Ajax, PSV, AZ Alkmaar, Twente, Heerenveen, Dan Haag, PEC Zwolle e Excelsior). A seleção da Holanda é, presentemente, a campeã europeia e a vice-campeã mundial.

4 – ESPANHA (46,94 Milhões de habitantes)
Em Espanha o principal campeonato é disputado a 16 equipas e os maiores Clubes da La Liga masculina fazem-se representar: Atletic Madrid, Barcelona, Real Madrid, Atleti Bilbao, Rayo Vallecano, Espanyol, Sevilha, Eibar, Deportivo La Coruña, Levante, Betis, Beal Sociedad, Logroño, Valencia, Huelva e Santa Teresa. Desde há 3 anos, o Barcelona destaca-se e é atualmente o lider incontestado (16 jogos 16 vitórias) e detém o título de vice-campeão europeu de clubes.

5 – ITÁLIA (60,36 Milhões de habitantes)
Em Itália a Serie A Feminina é disputada por 12 equipas a 2 voltas. Nela participam boa parte dos principais clubes do futebol Masculino italiano. Juventus, AC Milan, Fiorentina, Sassuolo, AS Roma, Empoli, Inter Mil., Florentia F, Verona, Napoli, Bari e San Marino.

6 – ALEMANHA (83,02 Milhões de habitantes)
A Alemanha é historicamente uma das potências do Futebol Feminino. A sua seleção já conquistou 2 mundiais. A Bundesliga Feminina é jogada por 12 equipas a 2 voltas e, mais uma vez, alguns dos principais Clubes da Bundesliga Masculina estão representados: Bayern Munich, Wolfsburg, Hoffenheim, Potsdam, Bayer Leverkusen, Eintracht Frankfurt, Freiburg, Essen, Bremen, Meppen, Sand e Duisburg.

7 – E.U.A. (328,2 Milhões de habitantes)
No país onde o Futebol Feminino está mais desenvolvido (4 Títulos de campeãs mundiais por seleções) o campeonato profissional é disputado por 9 equipas (de 9 diferentes Estados) a 3 voltas. Além do Campeonato Nacional profissional, existem campeonatos universitários que se jogam, numa primeira fase, a nível Estadual e, numa segunda fase, a nível nacional. Estes campeonatos universitários constituem o principal viveiro que alimenta o campeonato profissional.

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Em Portugal, país com cerca de 10,28 milhões de habitantes, o principal campeonato de Futebol Feminino joga-se a 20 (!!) equipas. A competitividade e o desenvolvimento (ou falta deles) começa por aqui. Torna-se claro que com este quadro “competitivo” aquilo que menos se promove é a competitividade e, assim sendo, também não se estará a promover a atratividade do espetáculo e dificilmente se cativarão públicos e investidores.

Não é esse o entendimento da F.P.F.. A sua responsável directiva para o FF, Mónica Jorge, em artigo de opinião para a rubrica “A Bola é minha” no jornal A Bola de 20 de Junho de 2020, afirma, entre outras preciosidades, que «(…) A FPF decidiu, face ao período extremamente delicado que atravessamos, introduzir diversas mudanças nos regulamentos das provas que organiza. Mudanças nos formatos e nos regulamentos. O objetivo é sempre o mesmo: tornar a competição melhor, mais equilibrada, e assim potenciar o desenvolvimento de jogadores, treinadores e clubes.(…)» e explicita «(…) O campeonato feminino é um desses casos. A FPF decidiu introduzir um limite para o número de inscritas por plantel, para que os clubes mais poderosos financeiramente não possam limitar a circulação de jogadoras, mantendo-as no plantel mas com pouca utilização.(…)» ou «(…)A FPF aumentou o número de jogadoras formadas localmente na ficha de jogo, para garantir que existe espaço para as jogadoras da formação(…)» ou «(…)a FPF alargou o número de clubes na primeira divisão e alterou o modelo competitivo para garantir maior equlíbrio entre as equipas e mais apoio para as jogadoras (…)» ou «(…) é estabelecido o limite máximo de 550 000 euros para a massa salarial das jogadoras inscritas para a temporada 2020/2021. Entende-se por massa salarial do plantel a soma dos salários e/ou subsídios declarados nos contratos das jogadoras. Como resulta claro, não existe qualquer teto salarial. Nem podia existir. Os clubes são livres de fazer os contratos que entenderem com as jogadoras.(…)»

A hipocrisia no seu expoente máximo. O limite do número de inscritas não impede que os Clubes “mais poderosos” retenham jogadoras impedindo a sua circulação por outros clubes. Basta terem equipas B, como têm o Sporting e o Valadares. E isso não é para impedir circulação por outros clubes, mas sim para oferecer um quadro competitivo mais exigentes para as suas jogadoras da formação. Algo que deveria preocupar muito mais a responsável da FPF num período em que, precisamente, não existe competição nos escalões de formação.
O aumento do número das jogadoras formadas localmente nas fichas de jogo é outra falácia quando isso permite que estejam inscritas 10 estrangeiras e todas elas possam fazer parte do onze inicial. Ou quando passam a contar como “jogadoras formadas localmente” cabo verdianas com 3 anos de morada em Portugal ou ucranianas que vieram para Portugal há 5 anos mas passaram os últimos 4 a jogar no … país de Gales.

O cúmulo de incoerência é justificar o aumento para 20 equipas no quadro competitivo principal como medida para «garantir maior equilíbrio entre as equipas e mais apoio para as jogadoras». As Federações dos sete países apontados anteriormente que aprendam. Se querem ter campeonatos competitivos deveria aumentar o número de equipas para 30, 40 ou mesmo 50 equipas. Afinal, a FPF, arauta das boas práticas, acaba de aumentar de 12 para 14 e de 14 para 20 o número de equipas do seu quadro competitivo principal e isto num país com cerca de metade a 23 avos das populações desses países. Em plena pandemia! Aprendam!

Finalmente, impor um limite à massa salarial das equipas e dizer que daí «resulta claro não haver qualquer teto salarial» e que «os clubes são livres de fazer com as jogadoras os contratos que entenderem» é chamar-nos de burros. Primeiro porque qualquer limitação à massa salarial, dê a senhora as piruetas que quiser, é sempre uma limitação à contratação. Depois, porque essa limtação de massa salarial só tenderá a reduzir o salário das jogadoras formadas localmente, uma vez que atrair outras implica NORMALMENTE maiores custos e reduz a margem para os salários restantes; com a massa salarial limitada essa margem apenas tenderá a diminuir. Só para terem uma ideia, um plantel de 25 jogadoras dá um ordenado médio bruto de 1.628€ (sobre o qual incidem, no mínimo, 40% de impostos). Por força deste “apoio às jogadoras” as mesmas desenvolveram nas redes sociais e no seu sindicato um movimento que levou a FPF a retirar esta medida. Só para reforçar a ideia do que seria esse disparate, refira-se que no mesmo período em que a Diretora Mónica Jorga escrevia este churrilho de barbaridades n’A Bola, o Chelsea acabava de celebrar com o Wolfsburgo um acordo para contratar a avançada holandesa Pernille Harder por 350.000 euros, o que serve para mostrar como iriam ficar as possibilidades de qualquer competitividade internacional das melhores equipas nacionais.

Enfim, com estas condições, tem cabido a alguns Clubes, APESAR DA F.P.F. E DA L.P.F.P., o papel mais ativo no desenvolvimento do Futebol Feminino. Sporting e Braga primeiro, Benfica depois e mais recentemente Famalicão, são os clubes que mais procuram promover o salto qualitativo no Futebol herdado pelo perseverante esforço de dirigentes e atletas de históricos do FF como o Boavista, o 1º de Dezembro, o Futebol Benfica, o Valadares Gaia ou o Albergaria. E, sejamos justos, o relevante trabalho desenvolvido no apoio competitivo aos escalões de formação por Associações de Futebol a de Aveiro e, sobretudo, a de Braga também constituem bons exemplos.

Particular solidário com Moçambique - Benfica 0 - Sporting 1 - mais de 15.000 espectadores directo na TVI

Particular solidário com Moçambique – Benfica 0 – Sporting 1 – mais de 15.000 espectadores directo na TVI

Mas, sejamos também claros, é à Federação e à Liga que compete apresentar propostas que não só aliciem mas também comprometam as SADs e SDUQs dos Clubes que competem nas 2 Ligas Profissionais Masculinas a formar equipas de Futebol Feminino. A “entrada” de equipas de Clubes como Académica, Tondela, Chaves, Portimonense e, sobretudo, Guimarães e Porto iriam chamar mais público, contribuir para alargar a base nacional de formação e recrutamento de novas atletas, aumentar a competividade e tornar cada vez mais apetecível o “produto” Futebol Feminino. Só que, para isso é preciso demonstrar que o Futebol Feminino tem condições para ser MUITO mais atrativo do que está a ser em Portugal. E é também à F.P.F. e à L.P.F.P. que compete, após criadas essas condições de competitividade, de atratividade e de promoção do espetáculo, negociar bons sponsors para as competições e bons contratos centralizados de direitos televisivos, para, desse modo, ainda potenciar mais e tornar mais sustentável o desenvolvimento do Futebol Feminino.

* dos Açores com amor, o Álvaro Antunes prepara-nos um petisco temperado ao ritmo do nosso futebol feminino. Às terças!