Quanto do que conseguimos vem do interno? Quanto do que conseguimos vem do externo? Será, para estes amigos criadores que se pavoneiam neste escuro e triste planeta, a eterna questão. Sendo que num globo onde é tão difícil, mas tão difícil, conseguir replicar aquilo que temos na mente quando se transporta para o físico, é fácil culpar o tal planeta e tudo o que nele se insere pelas coisas não saírem como foram desenhadas na mente. Ora um factor que poderá aqui fazer toda a diferença é que a mente individual raramente engloba todas as milhentas vontades exteriores que coabitam no mesmo planeta, as mesmas que tentam (também e tal como nós) realizar as suas. E assim sendo estamos sempre focados na árvore e não na floresta, tentando a impossível tarefa de transportar a nossa limitada vontade para o físico, ao mesmo tempo que tentamos atropelar todas as vontades que a rodeiam.

E atropelar é uma palavra que fará imenso sentido quando se falar no Clássico, entre FC Porto e Sporting, que se jogou neste passado sábado. E sê-lo-á por duas razões. A primeira porque há uma componente neste tipo de jogos (entre duas equipas que jogam para decidir um campeonato) que tem a ver com a gula das duas equipas. Há a tentação, assim, de se jogar não só para se ganhar, mas para se superiorizar ao adversário, para se provar ao Mundo que se é melhor equipa – que é o mesmo que dizer que se joga para se ver o ego validado, ao mesmo tempo que se tenta colocar uma enorme dúvida sobre o adversário (a segunda, é o pressing. Mas já lá vamos).

Contra o Sporting de Rúben Amorim – não só num jogo, mas numa longa caminhada que deixa a nu os defeitos e virtudes de todas as equipas – urge a necessidade dos seus adversários directos, de lhe provocarem dúvidas naquele mindset que tem tanto de zen como de implacável, e que segue passeando pela Liga mostrando um elevadíssimo grau de eficácia. Assim, o FC Porto não tinha só de lutar pelos três pontos, não tinha só de lutar contra 10 pontos de desvantagem, mas tinha de lutar contra todo o histórico deste campeonato, contra todo o potencial deste leão faminto e desejoso de glória. Claro que assim não bastava só que uma daquele par de oportunidades que Taremi teve nos pés entrasse. Para o FC Porto realmente entrar na luta pelo campeonato, o jogo do Dragão traçava outra linha imperativa: a de criar dúvidas no Sporting sobre qual é mesmo a melhor equipa.

E aqui não interessa a opinião deste que vos escreve, como não interessa a vossa, como também não interessará (agora) a de Sérgio Oliveira ou de Sérgio Conceição. O que interessa do desfecho deste Clássico é que o Sporting saiu do Dragão com a sua visão de si mesmo intacta. E o FC Porto lutou, lutou, lutou não só para ganhar, mas para atropelar o Sporting – para lhe provocar dúvidas, para sacar um daqueles jogos de superioridade inequívoca, uma noite de gala do mesmo género daquelas em que vimos perecer no mesmo recinto alguns gigantes europeus. Não bastou (como não bastava) ao FC Porto ser melhor. Tem argumentos para o reclamar, e talvez parte da opinião pública até lhe conceda isso mesmo, mas o resultado e a forma como decorreu o jogo, deixará sempre dúvidas. E nessas a imagem de si mesmo do Sporting permanecerá.

Principalmente na primeira metade, o Sporting foi bastante inteligente a travar um FC Porto que lutava para esse desiderato. Que, lembramos, partia em desvantagem na classificação, e que precisava não só de uma vitória, mas de algo contundente, algo perfeito. O que é equivalente a dizer que tudo o que não fosse isso a acontecer, seria bom para o Sporting. 99% dos cenários eram favoráveis aos de Amorim, e isso (ainda que não catapultasse os leões para uma exibição superior) manteve o Sporting confortável no jogo. Nessa enorme almofada que separava as duas equipas, bastava ao Sporting neutralizar ao máximo os portistas. Impedi-los de levar a bola para o último terço, onde normalmente sufocam os adversários. E tentanto igualar o FC Porto naquela habitual tentativa de atropelo que é o pressing, o jogo tornou-se num engarrafamento em hora-de-ponta. E nessa rush hour, o Sporting viu um plano perfeito (dos muitos que lhe eram favoráveis) para impedir o FC Porto de chegar àquela noite de gala que procurava.

O jogo não andava, os duelos eram constantes e a fome das duas equipas em chegar primeiro à bola, redundou numa sucessão de faltas. O jogo não fluía e isso desgastava (ainda mais) emocionalmente quem precisava que ele andasse para cumprir um plano que, segundo a segundo, se via mais difícil de concretizar. Algo que na segunda-parte mudou para melhor (do ponto de vista da fluidez de jogo), e que inevitavelmente levou o FC Porto a rondar as áreas que mais gosta de frequentar. Mas, sublinhe-se rondar, e não se ceda à tentação de se pensar que o campeão nacional conseguiu vergar, prender, quem lhe foge com o título. As situações não se sucederam invariavelmente sempre que o FC Porto desenhou o seu domínio territorial (por via do pressing que é sua imagem de marca, por via de mais tempo com bola para tentar expor o sistema do adversário) mas não conseguiu aquela sucessão de momentos capazes de provocar dúvida. Ainda assim, conseguiu várias oportunidades que lhe podiam ter dado a vitória. Mas, lembramos, segundo a segundo o objectivo da emboscada e atropelamento ao leão foi-se esfumando. E com isso a ser-lhe negado foi-se esfumando a clarividência, foi-se carregando o espaço emocional, e as dúvidas que se tentavam lançar para o Sporting acabavam por não sair da mente que as queria lançar. Daí que não surpreenda que num jogo que não tinha uma sucessão tão grande de oportunidades para a equipa que (quase que) parecia ter que golear, essas mesmas oportunidades fossem… desperdiçadas. E isto não retira mérito no jogo ao FC Porto, e não lança Taremi para o inferno dos goleadores. Já vimos demasiado futebol para sabermos que o desgaste emocional, que a frustração que invade quem não vê o seu objectivo replicado no físico é tão grande que o bloqueia na hora de finalizar aquilo que mais quer (Alô, Bryan Ruiz!).

Não belisca o carácter dos jogadores, como do colectivo e do treinador do FC Porto, e muito menos belisca o de Rúben Amorim. Um treinador que jogou com o resultado (e que deu a entender que, ainda assim, queria mais, muito mais) mas que nunca deixou atemorizar a equipa ao ponto de lhe nascerem dúvidas. Com Rúben, já se sabe, não muda o sistema, nao muda a atitude, mas sobretudo não muda a fome. E com isto consegue uma das coisas que Sérgio Conceição mais valoriza: que a sua equipa se mantenha constantemente ligada ao jogo, que não tenha momentos de quebra que o adversário (quando está por cima) aproveita. E mesmo sem tendo dado a estocada habitual, o leão segue vivo no seu desejo mas sobretudo na sua certeza. E talvez nem mesmo um possível 1-0, ou 2-0, lhe retirasse essa dúvida que Sérgio lhe queria provocar. Talvez. O que é certo é que numa análise ao jogo, os golos (ironicamente) serão o great equalizer, algo que validará qualquer estratégia, qualquer plano, qualquer táctica. E sem eles o superioridade moral que Conceição reclamou depois do jogo, factualmente… não existe.

Contudo, não nos apressemos a criar os habituais rótulos extremistas que surgem depois de derrotas ou vitórias. O FC Porto foi uma equipa que não sobreviveu a um desejo quase impossível, a um desiderato improvável, contra uma equipa à qual lhe bastava jogar para não ser subjugada. Mas continua uma equipa extremamente competitiva, que talvez não se tenha apercebido a tempo de como esta Liga se desenrolaria. Sem a habitual luta por uma hegemonia já com teias-de-aranha, emergiu algo diferente. Algo que provoca dúvidas não habituais, algo que força métodos diferentes, algo que redunda num enorme enigma – que o FC Porto quase resolveu (em termos de infligir a primeira derrota ao líder invicto), mas que andou bem longe de conseguir em termos emocionais e mentais naquele desiderato que se foi esfumando ao longo do jogo: o de provar a todos (inclusive ao Sporting) que era melhor. Mas só certos momentos para o demonstrar e argumentar contra não servem, pois o Sporting segue sem dúvidas para uma série de jogos porque aquilo que Sérgio mais queria não aconteceu. E se nos lembrarmos da visita do FC Porto à Luz na qual infligiu a primeira derrota aos de Bruno Lage para a Liga saberemos do que estou a falar. Aí, o FC Porto venceu, convenceu e mostrou caminho aos outros para anularem o Benfica (fechou jogo interior, deixou o Benfica sem ideias, e andou pelos espaços que o mesmo deixava depois de perder a sua maior arma). E do que viram ontem, ficaram com certezas para como anular o Sporting, de como lhe retirar a maior arma?

Texto escrito por Brian Laudrup no site Lateral Esquerdo
*“outros rugidos” é a forma da Tasca destacar o que de bom ou de polémico se vai escrevendo na internet verde e branca