Campeões nacionais do Sporting em 2000 e 2002? O guarda-redes Nélson, os defesas Beto, Rui Jorge, Quiroga e César Prates; o médio Pedro Barbosa e o avançado Robert Spehar. Não mais de sete. Mas falta aqui um nome na lista, talvez o mais mediático, o mais reconhecido internacionalmente: André Cruz, o cavalheiro do centro da defesa. Oito foi a conta que o leão fez.

Cavalheiro, sim senhor. André fala como jogava. Sereno, com classe, a evitar sempre o grito e a optar pelo caminho da inteligência. Estamos a falar de um atleta que foi mais de 30 vezes internacional pelo Brasil e que esteve no Campeonato do Mundo de 1998.

Chegou a Alvalade já depois dos 30 anos, mas mais do que a tempo de ser absolutamente decisivo para os títulos de 2000 e de 2002.

André saiu bicampeão do Sporting, mas o Sporting nunca saiu dele. Esteve, de resto, envolvido na lista de um dos candidatos nas eleições que colocaram Frederico Varandas na presidência. Vive perto de São Paulo, ocupa um cargo de enorme responsabilidade na prefeitura de Santa Bárbara d’Oeste e conseguiu tirar uma hora à apertada agenda para colocar a conversa em dia com o Maisfutebol.

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MF – O André tem uma carreira riquíssima. Nápoles, Milan, Flamengo, seleção do Brasil. Onde coloca o Sporting neste percurso tão bom?

AC – O Sporting tem uma importância importante na minha vida. Foi o clube onde mais troféus conquistei. Estive lá dois anos e meio, criei uma ligação muito forte com Portugal e considero que o país é a minha segunda casa. Tenho aí grandes amigos, adorei viver no país, adoro o espírito e a comida, fui sempre bem tratado. E não só por sportinguistas (risos). Tenho um carinho enorme pelo Sporting. Pelo Nápoles também, diria que são os dois clubes mais marcados na minha memória.

MF – O André chegou em janeiro em 2000 ao Sporting. Como surgiu esse convite?

AC – Eu estava no Torino, em Itália, e não estava satisfeito. Aconteceram coisas que me levaram a querer sair do clube. Eles não queriam que eu saísse, mas deixei de estar confortável e senti que o Torino podia mesmo descer à segunda divisão. ‘Eu não vim para cá para descer à segunda divisão’. Foi então que falei com o Luciano d’Onófrio [empresário] e ele trouxe o nome do Sporting para cima da mesa. Recolhi informações do clube, até junto de jornalistas amigos, e convenci o Torino a libertar-me. Eu sabia que o Sporting estava há um tempo sem ganhar títulos e pensei que seria uma boa oportunidade para marcar o meu nome na história do clube. Eu fazia golos, batia bem os livres, tinha feito golos em todo o lado, a equipa estava bem e juntei tudo. ‘Se calhar posso ficar na história do clube’. Acabou por dar tudo certo. Fiz golos e ajudei a conquistar dois campeonatos.

MF – Como era o Sporting em 2000? Que clube encontrou?

AC – Bem, eu quando cheguei ao Nápoles fiquei assustado (risos). ‘Caraca, para onde eu vim?’ As condições eram más, mas o Maradona e o Careca tinham passado por lá e eu também quis deixar a minha marca nesse clube maravilhoso. Digo isto porque senti um pouco o mesmo ao chegar ao Sporting. Era assim: entrava no estádio, equipávamo-nos no balneário e depois atravessávamos a rua para treinar nos dois campos de treino que existiam. No Standard era parecido, mas o acesso ao campo de treinos era fechado. No Sporting, não. ‘Bem, se dá alguma coisa de errado qualquer adepto entra aqui’ (risos). Estranhei um pouco isso, mas de resto não tive problemas. A organização era boa, vencemos muitas vezes, foi ótimo.

MF – No Sporting fez 15 golos em dois anos e meio. Consegue escolher o melhor?

AC – Todos foram especiais, mas dentro dos especiais há sempre ‘O especial’. E foi aquele contra o FC Porto, ao Vítor Baía. Um guarda-redes que dispensa comentários, era o titular do Porto e da seleção. Vencemos esse jogo e conseguimos ultrapassar o FC Porto. Esse golo foi fundamental para o título. Foi contra o FC Porto, eu estava a ser pressionado por jornalistas, adeptos e até por mim mesmo para fazer golos de livre. Estava a demorar muito (risos). E veio contra o FC Porto e logo a um grande guarda-redes, como era o Vítor Baía. Foi o meu golo mais importante em Portugal.

MF – Nos anos 80 e 90 não faltavam defesas brasileiros a baterem bem os livres diretos. Geraldão, Celso, Branco, Heitor, André Cruz.

AC – O Brasil é o maior formador de talentos do mundo, até pelo tamanho. A Europa cabe dentro do Brasil. Por isso é normal formar e exportar grandes jogadores. Nesse período dos anos 80 e 90 o calendário era diferente e havia tempo para treinar. Não só as bolas paradas, mas outros fundamentos: passe curto, passe longo, cabeceamento, receção, treino específico para centrais, para laterais, para os avançados. O que eu vejo é que aqui no Brasil, por culpa do calendário e das viagens longas, esse tipo de treino acabou. ‘Por que acabaram os batedores de livres’? Não há crianças na rua, há mais crime, há mais telemóveis e videojogos, acho que isso explica um pouco essa ausência de especialistas nesses lances.

MF – Que conquista lhe deu mais prazer? O campeonato de 2000 ou o de 2002?

AC – Em 2000 cheguei a meio da época. Os plantéis de 99/00 e 01/02 até eram parecidos ao nível da qualidade. Em 2000 eu cheguei e a equipa passou a ter um bom batedor de livres. E havia jogadores-chave. O Beto Acosta era o nosso goleador, o Pedro Barbosa, o Mbo Mpenza, o Beto, o Schmeichel dava-nos uma grande segurança. Em 2000 éramos muito fortes coletivamente e tínhamos jogadores capazes de decidir jogos. Em 2002 não era muito diferente. A defesa era muito equilibrada, boa, segura, e na frente havia o Mário Jardel, o Pedro Barbosa, o João Pinto. O que é preciso para vencer? Não sofrer golos e marcar golos (risos). Simples, não é? O meu Sporting era forte nas duas situações. Ah, e tínhamos um aspeto fundamental: jogadores muito experientes. Isso fez a diferença em jogos da Liga dos Campeões e nos jogos grandes em Portugal.

MF – No Sporting foi treinado por Augusto Inácio, Manuel Fernandes e Laszlo Boloni. Teve uma boa relação com todos, gostou de trabalhar com eles?

AC – Acho que tive uma boa relação com eles. Qual foi o melhor? É difícil responder, sinceramente. Eu aprendi muito com o holandês Arie Haan na Bélgica [Standard], também aprendi com o Inácio e o Manel, embora o Manel tenha ficado pouco tempo. O Inácio e o Manel são mais conversadores, conseguem unir o grupo a falar, o Boloni é mais do lado europeu de leste, mais duro e frio (risos). Talvez até por culpa da língua. Era mais duro, mais incisivo, fazia os jogadores correrem. Tinham formas diferentes de trabalhar, mas ambas resultaram. Em 2000/01 deu errado para todos, menos para o Boavista. Trabalhei com o Fabio Capello, o Alberto Zaccheroni, o Gigi Simone, o Vujadin Boskov, não consigo dizer mal de nenhum. Nunca quis ser treinador, mas sinto que todos me ensinaram muito.

MF – Nos dois anos e meio em Portugal apanhou algum avançado realmente difícil de marcar?

AC – Mais uma pergunta difícil (risos). A um nível tão alto todos dão trabalho. Eu defrontei grandes craques em Itália. Em Portugal… o Derlei dava muito trabalho, trabalho para caramba. E ele estava no Leiria antes de ir para o FC Porto.

MF – Esteve em duas Copas América, foi ao Mundial de sub20 e também ao Mundial de 98, em França. Mas acabou por não ser utilizado pelo Mário Zagallo. É uma mágoa que tem na sua carreira?

AC – Eu era titular da seleção em 1997 e capitão da equipa, fazia dupla com o Aldair. Infelizmente tive uma lesão, uma hérnia discal, e em janeiro de 1998 fui operado. Nesse momento, era quase impossível recuperar a tempo de ir ao Mundial. Acreditei até ao fim. A minha mãe faleceu nesse ano, vim para o Brasil fazer a recuperação e disse numa entrevista que até ao último minuto ia acreditar na chamada. Chamaram-me maluco. O Márcio Santos, outro dos centrais, teve um problema muscular já perto do final da época, quando eu já estava a jogar no AC Milan. Tinha dois jogos feitos. Então o Zagallo ligou-me e perguntou como é que eu estava. E eu disse que estava bem, obviamente (risos). Acabei por ser convocado. Por aquilo que passei do final de 97 até maio de 98, só eu acreditava que era possível ir ao Mundial. Treinava como um louco para me recuperar das costas. Perdi força no tornozelo direito depois da operação, fazia fortalecimento muscular, à terça e à quarta treinava escondido num clube em Milão, fazia lá natação. E fui premiado com essa chamada. De um lado há a frustração por não ter jogado; do outro há o prémio de ter estado lá no Mundial. Foi uma história de superação que eu tento passar para a criançada.

MF – Por falar em superação, como é que viveu este título do Sporting, 19 anos após o anterior?

AC – Com sinceridade, não esperava. Não consigo entender como o Sporting esteve 19 anos sem ser campeão. Perguntam-me muitas vezes e não consigo responder. Mas ficou. Uma equipa como o Sporting não pode ficar tanto tempo sem vencer um título. Em 2002 eu acreditava, mesmo após a saída de alguns jogadores, que o Sporting conseguiria manter uma sequência de títulos. Porque a equipa era boa. Eu saí porque já tinha 33 anos e senti que estava na altura de voltar ao Brasil. Foram muitos anos fora de casa. O Phil Babb também saiu, o Mário Jardel teve aquele problema [dependência de substâncias psicoativas, mas ficou mais uma época] e o resto da malta ficou quase toda. Mas o Sporting é muito grande. Não é por perder um jogador que vai ficar 19 anos sem um título. Foi muita ansiedade. Em fevereiro atrevi-me a dar os parabéns ao Hugo Viana pelo título, muito antecipadamente.

MF – Em fevereiro? Ainda faltavam muitos jogos.

AC – Sentia que o Sporting estava muito bem e mantinha uma regularidade muito grande. Tinha jovens de grande talento da equipa e outros jogadores mais experientes. Acreditava que era o ano do Sporting e nessa altura estava com uma vantagem de dez pontos sobre o segundo classificado. Eu podia fazer isso, as pessoas do Sporting é que não podiam (risos). Não consegui ver o jogo do título contra o Boavista, mas fico feliz, de coração, pela conquista do campeonato. É muito importante o Sporting iniciar aqui uma sequência de vitórias.

MF – Qual é a história que mais gosta de contar aos seus amigos sobre a passagem por Portugal?

AC – Há muitas, mas a mais marcante tem a ver com o título de 2000. Nós ganhámos no campo do Salgueiros, como se lembrarão. Foi uma festa gigante. Chegámos a Alvalade e vi gente em cima da cobertura, muita gente, e pensei que elas iam cair. No dia a seguir liguei a televisão, sentei-me no sofá, vi o telejornal e chorei. Chorei pelo Sporting e pela importância que a conquista do campeonato teve para milhões de pessoas. Fiquei muito marcado por isso.

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