Foi no Casa Pia que afinou as maravilhas da linha defensiva que rouba espaço aos adversários e ainda os mete em fora de jogo. Rúben Amorim fez do Sporting a melhor equipa nessa arte do offside, a nível europeu, no rácio entre foras de jogo provocados e remates permitidos à outra equipa. Em conversa com alguns protagonistas do jogo, Tribuna Expresso, num artigo de Hugo Tavares da Silva, tenta desmontar os labirintos complexos deste mecanismo de defesa

 

Depois de duas derrotas em duas jornadas, o treinador do Casa Pia decidiu mudar algumas coisas. Rúben Amorim chamou Bruno Simão, um amigo desde a tenra infância, e disse-lhe: “Vou precisar de ti, um jogador com formação, inteligente, vou mudar o sistema. Vou colocar isto com três centrais, vais deixar de ser lateral e vais passar a ser o meu central do lado esquerdo”. Após desaires em Loulé e com o Moura, em casa, o clube lisboeta goleou o Pinhalnovense fora, por 4-0. Ali semeou algumas das ideias que parecem inegociáveis para o treinador do Sporting.

Com essa alteração no desenho tático, abriu-se a torneira para outra realidade prazerosa e bem-sucedida: a armadilha do fora de jogo ou, se quisermos, a fábrica de foras de jogo alheios.

Alguns não gostam da expressão “armadilha do fora de jogo”. Trata-se de um encurtamento de espaços, de linhas, de controlo de espaço na profundidade e entrelinhas. Em 1987, César Luis Menotti, o então treinador do Atlético Madrid, andou à bulha com os jornalistas porque dizia que não praticava a armadilha do fora de jogo, mas sim “el achique de espacios”, ou seja, o encurtamento de espaços. Para quem gosta de uma boa novela, está aqui a resposta de um cronista que acusava o argentino de ter vergonha de jogar assim. Estava mal vista a ratoeira do fora de jogo, talvez ainda mais quando tocava nas imaculadas entranhas de um purista. Mas “armadilha” era antigamente, vá, quando qualquer jogador em fora de jogo estivesse a cinco ou a 50 metros da jogada fazia o fiscal de linha levantar a bandeirola. O Milan de Arrigo Sacchi terá sido um dos grandes responsáveis pelas mudanças na lei, tal era a coordenação e manipulação do jogo a seu favor.

O Sporting de Amorim é a equipa da I Liga portuguesa que mais foras de jogo (FdJ) provocou até este momento (21), a par do Arouca, segundo dados cedidos pela GoalPoint à Tribuna Expresso. A título de curiosidade, o Gil Vicente surge na terceira posição, com 20, enquanto FC Porto e Benfica provocaram 18 e 13 foras de jogo aos adversários, respetivamente. Na época passada, por exemplo, o Sporting sacou 99 FdJ, mais 16 do que o SLB, o segundo classificado neste segmento (FCP: 58).

 

Abrindo o ângulo, e considerando as duas últimas temporadas, os campeões nacionais são a sétima equipa a nível europeu nesta arte de colocar avançados adversários em offside (2,9 por jogo). Eibar (3,4), Spezia (3,3) e Roma (3,2) ocupam o pódio dourado nesta coreografia sincronizada que obriga o árbitro auxiliar ou o VAR a atuarem.

Há um detalhe interessante nestes dados — tratados até 22 outubro — da GoalPoint: o Sporting tem a melhor relação da Europa entre FdJ provocados e remates permitidos ao adversário. Isto é, permitiram-se apenas 2,5 remates por cada fora de jogo que os rapazes de Alvalade provocaram. A seguir aos lisboetas surgem Eibar (2,7), Betis (3), Roma (3,2) e Liverpool (3,2).

“É, de facto, um dos pontos fortes desta equipa de Rúben Amorim”, reflete Tomás da Cunha, comentador da TSF e Eleven Sports. “Não vem de agora, já está a ser consolidado desde a última época, sobretudo. Diria que, no futebol português, não se via esta coordenação numa linha defensiva há alguns anos, talvez desde o [primeiro] Benfica de Jesus, que, sem precisar uma época específica, era uma equipa bastante forte nesse sentido.”

 

É curiosa esta associação. Pegando na Liga dos Campeões, o Sporting (18) só é ultrapassado pelo Benfica de Jorge Jesus (19) em foras de jogo provocados — o Leipzig surge em 3.º, com 16. Também Cândido Costa, ex-futebolista e comentador do Canal 11, tocou nesse ponto. “O Rúben estava comigo no Belenenses e ouviu estas coisas todas. Claro que há cunho pessoal do Rúben, não estou a dizer que copiou o Jorge Jesus, há nuances, mas não acredito sinceramente que os valores fundamentais não estejam presentes, os que estou farto de repetir: bola, colega, espaço e adversário”. O ex-lateral, de facto, repetiu algumas vezes estes elementos ao longo da conversa.

Quão complexo é, então, estar numa linha defensiva? Quais são as referências, dificuldades e benefícios? Qual é a segredo? O que dificulta a vida ao defesa? O cansaço tem peso? Quão desgastante mentalmente é? Como se treina?

“Acima de tudo tem de haver uma grande entreajuda entre a linha defensiva, e muita comunicação também”, explica Ricardo Rocha, ex-futebolista com passagens por clubes como Benfica, Sp. Braga e Tottenham. “Cada um tem de ter a noção das capacidades dos companheiros de equipa, quer do lado dos centrais, quer dos laterais, e dos movimentos que fazem em termos de possíveis coberturas. Tem de haver grande entendimento. Por isso é que normalmente se diz, principalmente nos centrais, que não se fazem grandes mudanças na defesa. Tem de haver um entendimento perfeito”. Rocha deu conta de que na altura de Ronald Koeman, no Benfica, o holandês trabalhou intensamente esta vertente e que até tentou implementar uma linha de 5, mas que não deu grandes frutos e voltou à forma tradicional.

Cândido Costa, com alguns tiques de treinador, foi negando que existe uma linha defensiva, tampouco é linha de fora de jogo. “Acho que as equipas, hoje, não jogam em linha de fora de jogo. Isso não existe. No alto rendimento, no futebol de alto nível, não acho que joguem assim. O que acontece é uma segunda linha. Independentemente de onde a bola está, o jogador mais perto do adversário determina uma série de coisas comportamentais da última linha defensiva, ou da segunda linha defensiva. O lateral nunca define foras de jogo, comporta-se olhando para os centrais”, sentencia.

E continua: “Nesse aspeto, no Belenenses, com o Jorge Jesus — o treinador que tive que mais convicção tinha sobre o pormenor; para ele, um centímetro era um centímetro, um metrinho à frente podia ser a chave para perdermos ou ganharmos o jogo —, acabei por aprender e gostar muito do que ouvia porque a coisa funcionava. Eu, como lateral direito, se estiver num 1×1 defensivo com o extremo esquerdo, a meio do nosso meio-campo defensivo, eu sou a primeira linha defensiva. Depois, o central do meu lado nunca estará em linha comigo, à exceção se for já muito perto da área ou já na área mesmo, aí guiamo-nos pela linha da grande área. Mas, mais à frente, é o central do meu lado que define e o resto da linha defensiva vai guiar-se por esse central”, descreve o ex-futebolista que passou pelo FC Porto.

Quanto a referências visuais, Tomás da Cunha tocou no mesmo ponto. “O Sporting não quer dar muito espaço nas costas dos médios e simultaneamente quer fazer com que o adversário caia em fora de jogo. Há um aspeto que é muito visível nesta equipa do Sporting: usa as referências do campo para se ordenar, para se organizar, desde logo a linha da grande área. Às vezes, os centrais não entram na grande área, evitam ao máximo entrar, para tirar campo de ação ao adversário”, explica, ressalvando que quase nunca se observa realmente uma linha de 5, visto que há sempre alguém a ‘morder’ um jogador contrário, seja lateral ou um dos centrais. Quanto mais recuada no terreno, porém, mais composta estará a linha.

A exigência e os estímulos, seja numa linha de 4 ou 5, são enormes e, normalmente, os adeptos não dão tanto valor ou não compreendem este trabalho dos defesas. “A linha defensiva e os cinco defesas é algo que precisa de ser muito trabalhado, não é um sistema fácil de implementar. O rigor do Rúben mantém-se. Ele trabalhava muito, muito e muito exaustivamente com a defesa até as coisas começarem a fluir de forma natural. Ele disse-nos, tal e qual com estas palavras, ‘as coisas depois saem com os olhos fechados’”, conta Bruno Simão, que era o central por onde o jogo do Casa Pia começava, no início da época 2018/19 do Campeonato de Portugal, o terceiro escalão do futebol português. Ivan Dias, o irmão de Rúben Dias, fazia de Sebástian Coates, ou seja, era o central do meio, logo o patrão no que toca à orientação da linha defensiva.

Bruno Simão, de 36 anos, reconhece que os treinos eram muito exigentes, até porque a defesa estava muitas vezes em inferioridade numérica. “Quase que tínhamos um elástico que nos prendia uns aos outros, estávamos quase de mãos dadas. Há menos desgaste após ser tudo bem assimilado. É preciso concentração máxima durante os 90 minutos. A linha tem de estar sempre ali”, desabafa, admitindo que, quanto mais o cansaço entra, mais complica. “Mas as coisas acabam por sair. Obviamente que há jogos e jogos, adversários e adversários. O cansaço é mais mental, a luzinha tem de estar ligada constantemente. À mínima falha, se o adversário for perspicaz, é a morte.” O canhoto, hoje no Atlético, admite que viu algumas imagens no arranque de Amorim no Sporting e que foi como reviver tudo outra vez: “Vi-o a explicar, a agarrar os jogadores pela mão, a meter-se entre eles, a dizer como é que é. É de um rigor enorme, só assim dá frutos. Ele não abdica disso nem um bocadinho”.

Cândido Costa reforça a ideia: “[Estar numa linha defensiva] é muito exigente. É muito, muito desgastante. Exige muita concentração. Quando tens de tomar decisões que são fundamentais para o teu sucesso defensivo, obviamente que é muito desgastante. Às vezes, basta um erro para ruir toda a organização defensiva. Claro que, depois de se aprimorar o processo, as coisas tendem a ficar mais fáceis e automatizadas”.

Outra coisa que intriga, obviamente, é como é que se treina tal mecanismo defensivo.

Numa busca no YouTube, podem ver-se alguns treinos de Arrigo Sacchi ou Maurizio Sarri a trabalharem a linha defensiva, mostrando e escondendo a bola, isto é, acionando os estímulos “bola coberta” (adversário com bola está pressionado ou com os caminhos para a baliza tapados) e “bola descoberta” (quem tem a bola não está pressionado, pode ameaçar e colocar um passe na profundidade). Normalmente, em equipas de topo, que querem mandar no jogo e apertar mais à frente, quando a bola está coberta ou é jogada para trás, nota-se imediatamente a linha defensiva a subir, para encurtar os espaços. Quando a bola está descoberta, se é uma ameaça, a defesa costuma afundar um pouco, direcionando adequadamente os apoios, isto é, o posicionamento dos pés e, consequentemente, do corpo.

Haverá repetição até à exaustão? O futebolista gosta ou sofre? Como pensa o treinador? O que se faz para operacionalizar este mecanismo? O que está em cima da mesa para definir comportamentos da linha defensiva e automatismos?

“Era aborrecido, mas era necessário, principalmente em termos de posicionamento, em termos de coberturas”, concede Ricardo Rocha. Já Cândido Costa admite que os treinos de organização defensiva metem muita teoria e interrupções, o que vai contra a essência do jogador, que nunca perde aquela vontade de querer jogar, do prazer, da diversão, mas há aqui uma questão chave: “No futebol profissional tens de ser paciente. Primeiro, é difícil, treinos aborrecidos, muitas correções, muitas paragens, há pouco gozo nesse processo, mas depois começa a ser muito compensatório quando começas a perceber que isso ajuda a tua performance e que resulta. Depois, começa a ser viciante. Acredito que é pela repetição da ação que ficamos melhores, seja no que for”.

Nuno Batista, um treinador que passou recentemente pela seleção venezuelana e por clubes como Rio Ave, AEK e Celta de Vigo, revela que tudo começa na sedução: “A grande dificuldade de trabalhar uma linha defensiva, primeiro, é fazer os jogadores acreditarem na tua ideia, fazê-los acreditar que vamos ter sucesso”. Simplificando este mecanismo defensivo, o processo necessita de duas bases fundamentais: coordenação (“aquele estímulo aconteceu e nós vamos ter o mesmo comportamento”) e comunicação.

Batista, de 45 anos, revela depois uma série de etapas a desenvolver e ultrapassar para alcançar o estado ideal da organização defensiva, “sempre em contexto de dificuldades crescentes”, embora às vezes seja necessário dar passos atrás, “montar estruturas, porque houve ali algo que não foi trabalhado ou que se está a perder”.

A meta passa sempre pela criação de rotinas.

Como o ponto de partida deste artigo é o Sporting de Rúben Amorim, questionamos este treinador sobre as diferenças de trabalhar uma linha de 4 e de 5. “Os princípios são completamente diferentes. Numa linha de 4, muitas vezes, tens de fazer contenção porque há um conjunto de espaços, principalmente na variação do corredor do centro do jogo [sítio do campo onde está a bola], que tens de controlar e a tua linha não pode chegar. Com uma linha de 5, esse espaço é menor, em termos de largura, e a linha chega mais próxima. O lateral deve ser muito mais agressivo do que numa linha de 4”, vai explicando.

Ao longo deste processo, colocam-se muitas perguntas.

Que espaço quer o treinador controlar? Quem controla o espaço? Quem controla em que zona? Em que momento se baixa no terreno? Em que momento se encurta? Em que momento se aguenta?

Todas foram retiradas do cardápio extensamente elaborado por Nuno Batista ao longo de quase 40 minutos, um homem do futebol que se define como um “apaixonado” por estas conversas. Depois (e sempre) entra o individual na equação. “Falamos nos apoios [posicionamento dos pés e postura corporal]: de que forma os orientas? De que forma os orientas para controlar a bola, o espaço e o homem? É uma relação interessante. Muitos treinadores pegam naqueles exercícios que falaste [de Sacchi e Sarri] para controlar e definir esse tipo de comportamento e levar os jogadores a acreditarem naquele processo, mas depois há aqui uma questão que, para nós, é fundamental”, explica, deixando por pouco tempo o mistério no ar.

Há sempre algo mais complexo a entrar no prato desta temática, também a conversa foi em crescendo no que toca a complexidade.

“No desenvolvimento do jogo, de que forma é que controlas as variáveis que são mais abertas? Há um conjunto de fatores que vão interferir nisto. A pressão da bola mais longa, mais curta, a bola mais na lateral, mais frontal, uma bola mais longa, de que forma encurtamos, não encurtamos… Podes pegar nesses exercícios para transmitir uma ideia, mas depois tens de montar o treino em termos de operacionalização de aplicabilidade em grupos, colocando constrangimentos. É importante fazê-los sentir que a ideia é positiva, desenvolver momentos em que isso se aplica dentro de um contexto de sucesso e prazer, mas, acima de tudo, que dá resultados”, garante.

Nuno Batista vai colocando cenários em cima da mesa. Ora porque há treinadores que, quando a bola está descoberta e mesmo não havendo ameaça, baixam linhas, ora porque há defesas que demoram a repor a linha defensiva ou que se defendem, ficando mais atrás, abrindo espaço entrelinhas. Repor linhas é chave, afiança, até porque há equipas técnicas que preparam ataques em vagas, sendo a primeira uma mera manobra de diversão, um arrastamento ou engodo, para criar instabilidade na linha defensiva. “A bola não entrou e repus, mantenho a linha curta e agressiva para controlar o espaço entrelinhas. É muito mais difícil um jogador receber à minha frente e vir em condução do que uma bola longa que eu vou controlar na profundidade. É um contrassenso. Vou baixar? Não, não, vou aguentar. É muito mais perigoso o espaço à minha frente. Requer trabalho, confiança, estímulos, conforto, reforço e só assim se conseguem ter linhas defensivas como a do Sporting, que aguenta, aguenta, aguenta… Têm essa competência e capacidade, fazem-no muito bem”, reconhece.

Tomás da Cunha sinaliza ainda outra evidência: “Esta linha defensiva do Sporting nem tem jogadores muito rápidos, o que reforça e valoriza ainda mais o trabalho do treinador, porque é mais fácil controlar o espaço nas costas quando tens jogadores muito rápidos e muito agressivos a controlar esse espaço. Não é o caso”, diz, tendo em mente, sobretudo, os centrais Sebastián Coates, Zouhair Feddal e Gonçalo Inácio.

Bruno Simão, amigo de Amorim desde os nove anos, revela ainda que com o treinador do Sporting não havia “chutão na frente”. Era “outra das coisas obrigatórias”.

Quando mudou a tática e a ideia, depois das derrotas com Louletano e Moura, o treinador admitiu que alguns futebolistas sentiriam algumas dificuldades. Mas, depois, foi como fazer linhas no bingo. “Não podia haver um deslizezinho. Tirámos muitos e muitos foras de jogo às outras equipas. É um bónus, é bom sentir quando as coisas estão a sair bem, dávamos aquele berro ‘boa, boa’. Era o rigor. É como ele diz: uma vez assimilado, as outras equipas têm bastante dificuldade.”