Andava eu a tentar encontrar tempo para escrever sobre a surpreendente venda de Matheus Nunes, quando tropeço neste texto de António Tadeia. Tantas vezes já embirrei com ele, que hoje é dia de agradecer-lhe ter resumido mais de 90% daquilo que eu penso e dizer-lhe que concordo completamente com aquilo que escreveu.

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A gestão de mercado por um clube formador numa Liga periférica não é coisa fácil, porque depende de muita coisa. Depende da capacidade para cumprir orçamentos, depende da capacidade de convencer os jogadores a ficar por mais um ano, depende da vontade dos seus agentes fazerem mais um negócio e, no fim, depende ainda da capacidade destes mesmos agentes compensarem esse negócio com outro negócio, agora a compra de um substituto, que pode pôr em causa a capacidade para cumprir orçamentos e reiniciar o círculo vicioso. Ainda assim, a venda de Matheus Nunes por parte do Sporting neste momento parece ser um erro de gestão – e não é pelos valores envolvidos ou por ser ao Wolverhampton WFC, que o dinheiro não tem emblema, nem por acontecer a cinco dias de um clássico no Dragão, ainda que este fator torne a coisa mais suscetível de uma interpretação catastrofista. É por sublinhar a dependência que o Sporting tem hoje de fatores que não pode controlar – neste caso, acima de todos, o fator Jorge Mendes. E o objetivo de qualquer clube formador numa Liga como a nossa tem de ser reduzir essa dependência do que não controla.

Há muitas maneiras de gerir estas variáveis. O Ajax, por exemplo, deixa crescer gerações até elas se tornarem verdadeiramente competitivas (mesmo internacionalmente) e vende nessa altura toda a gente que cresce acima da dimensão da Liga em que joga, assumindo a quebra e o reinício do ciclo. Em Portugal não costuma fazer-se assim – a regra é, geralmente, vender a conta-gotas, tentar criar a ilusão de que só saem jogadores por negócios irrecusáveis e de que, com as mais-valias de uma venda, se reforça a equipa e ainda se equilibram as contas, de forma a manter a competitividade sempre em altas e as finanças acima da linha de água. A nossa regra é mais o que o Benfica fez com Darwin do que o que FC Porto fez com Vitinha e Fábio Vieira ou o que o Sporting fez agora com Palhinha e Matheus Nunes. É por isso que o negócio Matheus Nunes tem de ser visto à luz do que se passou antes com Palhinha, não só na perspetiva do clube, mas também na do jogador. E elas são necessariamente diferentes: o clube provavelmente não sentiria a necessidade de vender os dois no mesmo Verão, mas o jogador pode olhar para o destino do colega – o Fulham FC não será propriamente o sonho de um médio que foi fundamental no título de 2021… – e achar que mais vale destacar-se na Premier League do que estagnar na Liga dos Campeões. Se pensa assim está a pensar mal – que o diga, por exemplo, Rúben Neves – mas o raciocínio não deixa de ser possível. Da mesma forma que é possível que haja no Sporting quem olhe para os 20 milhões que rendeu Palhinha, para a desvalorização do seu passe depois do ano do título, e defenda a venda imediata de Matheus, antes que ele desvalorize também. Quem pensa assim também está a pensar mal, mas o raciocínio também não deixa de ser possível.

O que está aqui em causa é que no mesmo Verão em que perdeu Palhinha para o Fulham FC e Bragança com uma lesão que vai afastá-lo durante meses, o Sporting cedeu Matheus Nunes abaixo da cláusula de rescisão – e se menciono isto não é por achar o valor baixo, mas sim porque este fator pressupõe que, na realidade, o clube podia limitar-se a dizer “não”. Há aqui uma estranha semelhança com Agosto de 2003. Na altura, já tendo vendido Quaresma ao FC Barcelona, um Sporting que tinha sido campeão nacional em duas das últimas quatro épocas, não conseguiu segurar Ronaldo e deixou-o sair para o Manchester United por uma verba que o futuro veio a comprovar que não lhe fez justiça. A diferença é que, então, os dirigentes até tinham chegado a prometer não vender as duas jóias da formação na mesma janela de mercado, enquanto que agora tudo o que o clube fez foi revelar repetidamente que o jogador já recusara uma série de propostas que “podiam mudar-lhe a vida” para ficar em casa mais um ano. O resultado em 2003 foram 19 anos consecutivos sem ganhar campeonatos – o que já passara, mais 18, até ao título de Amorim em 2021. E nem por isso umas contas mais saudáveis, que permitissem acabar com a submissão do Sporting ao mercado e aos seus agentes – que em três destes quatro casos, de 2003 e 2022, foi sempre o mesmo –, e tornassem o clube capaz de dizer “não”.

Vamos colocar as coisas na devida proporção. Palhinha e Matheus Nunes não representam para o futebol nacional e mundial o que representavam naquela altura Quaresma e Ronaldo e por isso os clubes de destino não são tão prestigiantes. Renderam mais dinheiro porque o mercado hoje movimenta mais dinheiro do que há 19 anos. E o facto de estarem colocados em posições estranhamente idênticas no top mundial de transferências de cada uma destas duas épocas diz muita coisa. De acordo com o Transfermarkt, em 2003, a transferência de Ronaldo para o Manchester United, por 19 milhões de euros, foi a 12ª mais valiosa do mundo. Já a saída de Quaresma para o FC Barcelona, por 6,35 milhões de euros, quedou-se pela 39ª posição no ranking. Este ano, embora a transferência ainda não esteja nesta tabela, porque não está oficializada, a venda de Matheus Nunes ao Wolverhampton, por 45 milhões de euros, iguala a passagem de Lewandowski para o FC Barcelona na 13ª posição, dessa forma fazendo cair Palhinha do 44º para o 45º posto. E se vos maço com todos estes números é só por uma razão: para vos explicar que os negócios não foram maus. Os 45 milhões garantidos por Matheus Nunes são a segunda maior venda da história do Sporting, apenas atrás da de Bruno Fernandes (63 milhões, em 2020) e à frente da de João Mário (41 milhões, em 2016). O jogador vai ganhar seis vezes mais do que em Alvalade – e embora ache que ele poderia vir a conseguir no futuro um clube com outras ambições, não deve ser fácil recusar números com esta dimensão.

A questão que importa aqui entender é a que rodeia as razões que levaram o Sporting a deixar sair Matheus Nunes nestas circunstâncias e nesta altura – e a essa só o futuro responderá. Se é porque não consegue explicar a um jovem craque que vale mais ficar outro ano a lutar por ser campeão português, a jogar a Liga dos Campeões e o Mundial antes de se enterrar num clube secundário da Premier League, em Alcochete têm de começar a trabalhar esta vertente, porque esta mensagem depois alastra aos que vêm a seguir e trava quaisquer aspirações de os leões se tornarem realmente competitivo – e, por muitas coisas que tenha feito mal, nisto Bruno de Carvalho dava lições a toda a gente, como as dá agora António Salvador, por exemplo. Se é porque acredita que tem no plantel soluções capazes de superar a perda – como aconteceu quando não lutou por manter João Mário e o deixou assinar pelo Benfica, dessa forma ganhando espaço para o crescimento de Matheus Nunes –, isso vai ver-se nos próximos meses de Liga. Se é porque ainda não tinha o orçamento controlado e lhe fazia falta o dinheiro, certamente não vai gastar boa parte desta verba noutro médio e em mais um avançado, aproveitando antes para abater na dívida ou aprovisionar. Se nenhuma destas variáveis se verificar e os próximos dias forem marcados pela chegada a Alvalade de um par de reforços caros, trocando o certo pelo incerto a troco de coisa nenhuma, é porque o Sporting se deixou enredar na vontade de fazer circular o dinheiro que interessa fundamentalmente ao agente que fizer esses negócios e que mantém os nossos clubes prisioneiros nessa vertigem.

Qualquer julgamento feito nesta altura será precipitado. Mas não o fazer daqui por uns meses é fechar os olhos à realidade.