There’s a calm surrenderTo the rush of dayWhen the heat of a rolling windCan be turned away

Corria o ano de 2022. Em Lisboa, Setembro tinha mais chuva do que a que os Setembros costumam trazer, dando maiores proporções ao frenesim do final de um dia de trabalho e o começo das aulas para centenas de crianças. Foi nesse cenário meio caótico, que um pai e uma filha rumaram a Alvalade, casa do clube do seu coração, o Sporting Clube de Portugal, onde se disputava o jogo da segunda jornada da Champions League, provavelmente a mais importante competição futebolística de clubes.

O trânsito não complicou, a chuva amainou, o metro não tardou e a fila para entrar não emperrou, permitindo cantar o Mundo Sabe Que a subir uma escadaria que parece não acabar quando tens pressa de ocupar o teu lugar. O Tottenham pressionava alto, como já se esperava. E, obviamente, surgia no 3-4-3 que encaixava no do Sporting, sem que isso fosse motivo suficiente para os verde e brancos abdicarem da sua vontade de sair a jogar desde trás, desta feita chegando a puxar Porro quase à linha final, de forma a atrair Perisic e a abrir brechas no lado esquerdo da defesa adversária.

Com Goçalo Inácio novamente à direita do trio de centrais, foi da canhota do jovem que partiram muitas das iniciativas, grande parte delas tendo como elo um samurai que quis ser jogador de futebol, Morita de seu nome, que durante os primeiro 45 minutos encheu o campo e os olhos de quem para ele olhava. Desses movimentos, que permitiam ao Sporting ser rápido a chegar ao outro lado do campo, saiu o primeiro “bruá” da noite, quando Pote fez um daqueles passes para a baliza que só ele sabe fazer, obrigando Lloris a ir ao chão pela primeira vez. Trincão também reclamou protagonismo num remate cruzado, mas o momento mais incrível, já depois de um golo bem anulado a Richarlison na única vez em que Kane conseguiu fugir nas entrelinhas e lançar o colega no espaço criado pelo arrastar dos centrais, pertenceu a Edwards.

Do nada, o pequeno inglês que defrontava o clube onde se formou, recebeu a bola de Inácio (mais uma) e fintou um, dois, três, quatro conterrâneos, sempre em progressão, meteu em Trincão e pediu novamente a redonda, para tirar mais um azul da frente e, no cara a cara com o redes, não ter o discernimento para desviar a bola o suficiente. O mundo abria a boca de espanto, os ingleses corriam para as redes a reclamar a chamada do baixinho à selecção, o pai dizia à filha que aquilo lhe fazia lembrar o Maradona, no México 86, num dos mais bonitos contos de fadas da história do futebol.

An enchanted momentAnd it sees me throughIt’s enough for this restless warriorJust to be with you

O Sporting ia para o intervalo a merecer mais do que o 0-0 no marcador, o Tottenham veio do balneário apostado em mudar o rumo da partida, e começou por apontar a pressão directamente a Gonçalo Inácio. O Sporting deixou de conseguir sair a jogar e entrou em modo de sobrevivência, coisa que também faz parte da vida de uma equipa. Kane encontrou mais espaços para deixar de ser ponta de lança e ser playmaker, Emerson, teve duas oportunidades de acertar na baliza, perdeu uma por falta de jeito e outra por culpa de Adán, que voltaria a dizer presente quando foi Kane a tentar.

Entretanto, Morita já tinha amarelo, mas o espírito de samurai levava-o a disputar todas as bolas no fio da katana. Amorim chamou Sotiris, rapaz com estampa física considerável, e tornou-o parceiro de um Ugarte que foi crescendo na partida e que disputou com Nuno Santos o prémio do tentar remendar e esticar ao mesmo tempo. Também chamou Paulinho para tirar Trincão, a quem já só restava dedicação face à falta de pulmão e ao facto de não ter bola. Com estas duas mexidas, Amorim equilibrou o jogo, ou, se preferirem, estancou aquele cerco ao meio campo leonino que durava há mais de 20 minutos. Chama-se a isto aprender com o passado na Champions, sendo capaz de abdicar do futebol de pé para pé se disso depender continuar vivo. Foi exactamente o que aconteceu.

Os ingleses passaram a ter que preocupar-se com as bolas metidas para a sua defesa e com a possibilidade do meio campo leonino ganhar as segundas bolas, o que fez com que a sua pressão fosse desaparecendo. O jogo ficou equilibrado e mais equilibrado foi ficando à medida que o cansaço ia tomando conta das equipas. Tudo apontava para que o empate durasse até ao apito final. “Vamos marcar aos 90, pai! Vais ver! Como quando fomos campeões!”, vaticinava a pequena sonhadora, que pouco depois, aos 89′, via o seu príncipe encatado, Pedro Porro de seu nome, ir para cima dos três defesa que lhe apareceram pela frente, fazer um movimento de fora para dentro e ensaiar um remate em arco com o “pior pé”, para a defesa da noite do redes adversário.

A defesa deu origem a um canto e Alvalade agitou-se, sentindo que algo ainda podia acontecer. “Bora lá, Coates!”, lançava o pai ao universo, como se os deuses do futebol tivessem ouvidos. Pote ajeitou e cobrou, e naquela fracção de segundos em que o mundo parece parar, Paulinho mostrou os dentes como se um sapo tivesse sido beijado por uma princesa. Os ingleses cairam por terra, a filha e o pai cairam nos braços um do outro, o rugido do Leão escutou-se um pouco por todo o mundo.

Loucura instalada, corações a mil, Esgaio e Arthur para os lugares dos exaustos Nuno Santos e Edwards, bola ao meio, despacha essa merda para longe da nossa área, aguenta, segura a bola. Falta um minuto. Arthur toca na bola pela primeira vez, junto à linha lateral, a meio do meio campo inglês, e enquanto meio estádio perguntava a quem ocupava a cadeira do lado, “quem é este gajo?”, o camisola 33 acelerava para a história: rolinho na bola à Neymar para arrancar, passa o primeiro defesa em velocidade, enfia uma cueca de gola alta ao segundo, e remata com desacaramento por baixo das pernas do redes para o 2-0 e para a confirmação da vitória que garante a liderança do grupo na Champions.

A caminho de ficar sem voz, a filha e o pai recordam que a última vez que tinham visto um jogo da Champions, em Alvalade, tinham saído vergados a uma mão cheia, oferecida pelo City. Acontece que o futebol é repleto de capítulos que parecem tirados de um conto de fadas, e é por isso que, por mais que o nosso coração reclame, acabamos a cantar que prá semana, na outra e na outra, cá estaremos outra vez!

And can you feel the love tonightHow it’s laid to rest?It’s enough to make kings and vagabondsBelieve the very best