Eurico Gomes. Bicampeão pelo Benfica (1975/76 e 1976/77), bicampeão pelo Sporting (1979/80 e 1981/82) e bicampeão pelo FC Porto (1984/85 e 1985/86). Mais do que pertencer ao restrito lote de jogadores que representaram os três grandes, Eurico Gomes conquistou títulos em todos eles, tendo sido chamado à seleção de águia ao peito, de leão ao peito, de dragão ao peito.

O antigo defesa é um histórico do futebol português, um histórico que o futebol português esquece. E como treinador é o ‘pai’ daquela grandiosa equipa do Tirsense (de Giovanella, Paredão, Marcelo…) que subiu ao primeiro escalão e terminou a época no oitavo lugar, em 1994/95, ficando a apenas três pontos das competições europeias.

Numa entrevista ao Bancada, dispara sem receios contra a máfia e podres do futebol português e deixa várias respostas sobre o Sporting que vale a pena ler.

Então, Eurico? A carreira de treinador está encerrada?
Continuo a ser, obviamente, com grande legitimidade, um homem preparado e diplomado para exercer funções na área de treinador. Foi para isso que estudei. E ao longo do tempo fui reunindo um ‘know-how’ rico, nos clubes onde trabalhei. Apesar dos meus 64 anos, continuo a aprender, a querer aprender, a atualizar-me. Considero-me rico, na experiência de vida, mas não deixo de aprender. E a minha mais-valia está nisso. Não sou antigo. Tenho experiência…

E porque é que esses atributos nunca o catapultaram para uma grande viagem?
Com a minha carreira, com o meu historial, com os meus desempenhos nos clubes onde treinei, continuo a não perceber porque nunca tive oportunidade de treinar na I Liga, exceto naqueles clubes que eu transportei para o principal escalão. Em particular, no clube onde tive melhor desempenho como treinador, que foi no Tirsense.

Mas há poderes ocultos que determinam quem entra e quem sai dos comandos técnicos?
Lá está… Tenho provas. Há pessoas que me provaram uma realidade que eu fui sentindo e escondendo durante algum tempo. Ao fim de tanto tempo, quero continuar a ter muito respeito e amor pelos clubes que representei e nunca dizer mal deles, como nunca disse, porque o que está em causa são os líderes.

E que realidade é essa?
Eu pensava que era tudo casualidade, coincidência, mas afinal não é. Houve mesmo a intenção de alguém em prejudicar a minha carreira de treinador.

Quem quis prejudicá-lo?
À época, era um homem de um clube muito forte. Tenho provas de que a minha vida profissional foi prejudicada. Não tive convites. Tive portas fechadas.

“Um homem de clube muito forte”. Não há muitos perfis que encaixem nesta descrição…
Sou um homem de justiça e não virado para vinganças. É esse o meu estilo de vida. Não sou eu que faço a justiça. Quem faz justiça são aqueles que são responsáveis de nós virmos ao mundo e de nós partirmos deste mundo. Em termos desportivos, são sempre os adeptos a fazer essa justiça. Por eles trabalhei toda a minha vida. E tenho muito respeito pelos clubes que representei, pelos adeptos.

E por isso saiu para o estrangeiro.
É a vida, amigo.. Tive sempre de sustentar a família. Marrocos, Argélia, Arábia Saudita… E em todos os clubes onde trabalhei – que não foram grandes – existe um facto que eu gostava de sublinhar: os meus antecessores e os meus sucessores não fizeram melhor do que eu.

E em Portugal, Eurico? Aquela época em 1993/94 onde consegue o título da II Liga e com um registo notável, no Tirsense…
Em Portugal, fui autenticamente bloqueado.

No ano seguinte, na I Divisão, com o Tito como adjunto, numa equipa técnica com Jorge Amaral, um extraordinário oitavo lugar, à frente de históricos como o SC Braga, Boavista, Belenenses e até o saudoso Salgueiros…
Pois… E perguntam-me os leitores do Bancada: como se explica que um treinador, durante mais de 20 anos, não tenha um convite para trabalhar em Portugal, nem nos grandes clubes, nem nos médios clubes? Porquê? Já não falo em mim. Falemos num profissional em abstrato.

Porquê, Eurico?
A máfia do futebol roubou-me a carreira de treinador. Eu estou apto para treinar qualquer um. Andei a trabalhar em clubes com grandes dificuldades e deficiências organizacionais, apesar de estar mais preparado para os grandes clubes mundiais, porque foi aí que começou a minha carreira. Foi neles que eu fiz toda a minha carreira. Os grandes foram a minha universidade. Benfica, Sporting, FC Porto e seleção nacional dão a um treinador – têm de dar – todas as ferramentas. Tenho o meu diploma de quarto nível, posso trabalhar em qualquer clube ou seleção do mundo. E é mais fácil trabalhar num clube grande do que treinar no Tirsense, na União de Leiria, ou no Torreense.

Hoje, vemos apostas em treinadores sem curso e sem experiência, em grandes clubes. E mesmo Mourinho começou logo no Benfica, em 2000. Olhando ao seu início de carreira, arrepende-se de não ter esperado pela oportunidade certa?
Não tive feeling… Não devia ter começado a carreira de treinador da maneira como comecei, na II Divisão, no Rio Ave, quando faltavam três meses para o fim da época. Alguém me chamou para ir salvá-los da descida…

E conseguiu-o. Corria a temporada de 1988/89.
Com aquele bichinho de iniciar a carreira… Depois de fechar o ciclo como jogador, porque já não conseguia mais, quis mostrar às pessoas que o Eurico não estava acabado para o futebol, como muitas pessoas quiseram dizer. Devia ter esperado uns meses, em vez de ir ajudar o Rio Ave a não descer de divisão.

Mas o Rio Ave não desceu. Correu bem, a época.
Não só não desceu como ficou muitíssimo bem classificado. Uma bela temporada. Mas, com o conhecimento que tenho hoje, considero, mesmo assim, que não deveria ter iniciado a carreira da maneira como comecei. Deveria ter esperado o tempo que fosse preciso, até surgir uma oportunidade num clube de grande dimensão. Sem me comparar, lembro que o Mourinho começou como intérprete do Bobby Robson, no FC Porto, e, depois, no Barcelona. Vai para Espanha como adjunto do Bobby Robson. Mas viria a ser ‘encostado’ pelo Van Gaal, tal como eu fui, na única oportunidade que tive de carreira, no Benfica, encostado, quando tive a oportunidade de entrar na equipa técnica do alemão.

O alemão era Jupp Heynckes.
Eu fui convidado para ser o treinador de confiança da casa. Mas fui relegado. Ele queria que eu visse jogos e eu lá ia, assistir aos jogos… Enfim. Poderia ter sido a oportunidade da minha vida, se tivesse entrado na equipa técnica do Heynckes e ele saísse… É assim que nascem os grandes treinadores… Na altura, eu estava completamente diplomado e, pelos vistos, hoje já nem é preciso… São estas jogadas de mestre que os regulamentos modernos vão fazendo, para que isto acontece. Mourinho começa no Benfica, sem nunca ter tido qualquer experiência como treinador. Ele foi inteligente, muito mais inteligente do que eu. Soube esperar pela oportunidade. Atenção: eu respeito muito o Mourinho, apesar de achar que ele hoje já não ganharia tanto como ganhou. Há um momento em que os jogadores correm pelo treinador e outros em que os jogadores correm com o treinador. Nas minhas equipas, tento sempre que os jogadores corram por mim. Quando isso não acontece, vou-me embora.

Noto na sua resposta uma crítica pela contratação de treinadores sem qualificações. Como é que um treinador diplomado assiste a este fenómeno?
Eu não gostava de falar sobre isso, mas não perco esta oportunidade de desabafar um bocadinho, com os leitores do jornal Bancada. Acho isto uma calamidade. É uma injustiça. É desumano. Sobretudo por não existir direitos defendidos, que são os treinadores legais. Admite-se que, há uns anos, não se tenha já regulamentado esta situação? Eu sei que está regulamentado, mas não está aplicado à lei. Porquê? Qual é o medo? Quais são as influências? Não quero só falar de mim. Da minha geração, há treinadores com um história futebolística e técnica que estão na mesma situação que eu. São hoje mestres. E também vítimas desta ilegalidade. Eu diria desta máquina de ditadura empresarial.

Temos agora o caso do Rúben Amorim. Mas há mais…
Não é o Rúben que tem culpa. E mais uma vez aqui se percebe que os presidentes dos clubes têm culpa nesta situação, tal como, no caso do Rúben, no caso do Silas, do presidente do Sporting. Num curto espaço de tempo, contrata três treinadores que nem têm qualificação para ser treinadores de II Liga, quanto mais de um Sporting. Mas eu reconheço-lhes valor. Silas, que tem um património futebolístico engraçado, muito bom. O Rúben é excelente, muito bom. O miúdo não tem culpa nenhuma. Não estou contra o Rúben, assim como nunca estive contra o Silas. Estou contra esta forma de gerir os clubes e as instituições. Agora, não vou dizer porque é que o Rúben foi para o Sporting.

Porque é que o Rúben foi para o Sporting?
Não vou dizer, porque sei que não foi o presidente Varandas que o contratou. Mas isto é outra história. Quem manda no Sporting não é o presidente Varandas. Isso garanto-o.

Está a dizer que há dirigentes capturados?
Quando existe um núcleo duro do futebol mundial composto por agentes desportivos… De onde vieram? Onde é que eles andaram a trabalhar? Quais são as suas qualificações no terreno? Mas reconheço que são eles que mandam no futebol. A realidade é esta: não são pessoas sensíveis ao futebol, sensíveis aos jogadores e, sobretudo, aos adeptos. Lamento que homens do futebol se entreguem de alma e coração aos projetos financeiros dos agentes.

E o Eurico? Nunca recebeu nenhum convite de um clube da I Liga?
Na verdade, sei que me roubaram-me uma carreira, que tinha tudo para ter sucesso. Alguém poderoso mas sem rosto. Nunca recebi nenhum convite de nenhum clube, seja grande, médio, ou pequeno. Treinei o Tirsense, na I Liga, porque fui campeão na Segunda Divisão de Honra, em 1993/94. É o título que eu considero mais relevante na galeria do clube. E no segundo ano fiquei no oitavo lugar, com a mesma equipa. Paredão, Giovanella, Marcelo… Eu, na I Divisão, só treinei o Tirsense e a União de Leiria, porque os transportei à subida. Nunca mais tive um convite para treinar na I Divisão.

Sente-se vítima de alguma força oculta?
Eu gostava que vocês, jornalistas, me dissessem. Ou, melhor ainda, que pesquisassem. Eu não consigo responder a essa pergunta.

Vá, Eurico. Agora sem ironias.
Sei que fui bloqueado, sei que fui encostado. Fui encostado, por culpa de um ‘ponta de lança’, líder do futebol português, há muitos anos, que me fechou as portas todas.

Está a falar de quem? Não há muitos “líderes do futebol português há muitos anos”…
Estou a falar de um ‘ponta de lança’, muito importante na época. Não sou um homem de vinganças. Mas a justiça não sou eu que a faço.

Oh.. Não me vai dizer quem é? Suspeito de um nome.
Eu ando de cabeça levantada. Não consigo encostar a minha cabeça no travesseiro se não for com paz. Mas tenho a absoluta certeza do que me fizeram. Não consigo colocar um chip e esquecer o que me fizeram. Não faço isso. Nada me move contra ninguém, daí o meu silêncio. E acima de tudo respeito os adeptos.

É sem dúvida alguém com muito poder.
Teve, claro. No seu tempo. Mas não é a essa pessoa que eu atribuo a verdadeira culpa do pedido que faz. Ele faz o pedido, mas as pessoas que me fecharam as portas – os presidentes, diretores… – é que são os verdadeiros culpados. A personagem em si era uma personagem com muita força. Agora, já não tem os mesmos argumentos. Os anos e os cúmplices foram passando, de cima a baixo, triângulos que dominavam o futebol português estão esgotados no tempo. O que não quer dizer que o futebol português continue perigosamente minado. Só lamento não ter havido caráter e nível intelectual por parte dos presidentes dos clubes a quem pediam para que o Eurico nunca entrasse. Com os presidentes a aceitarem. A prova que eu tenho é que não era preciso dizer mal do Eurico aos presidentes, mas a subtileza de ter alguém muito melhor. Não tinham nível e tinham interesses. E no lugar do Eurico tinha de entrar outro.

Nunca nenhum presidente furou esse veto ao Eurico?
Nunca. Nunca tive um presidente que dissesse: ‘eu quero que se lixe’. Nunca tive um presidente que dissesse ‘o homem tem valor, o homem tem experiência, o homem tem caráter, vou contratá-lo’. A manipulação só é feita quando as pessoas não são verticais. Eu nunca vou pôr em causa a minha história e a minha verticalidade. Eu movimentei-me do Benfica para o Sporting, do Sporting para o FC Porto, na seleção nacional, sempre com verticalidade. Hoje, sou extraordinariamente acarinhado por todos os adeptos dos clubes que representei. Por todos. E tenho de ser reconhecido aos adeptos, porque eles são a essência do futebol. O futebol para mim foi sempre magia e entrega… Alguma vez eu imaginei que iria entrar num balneário onde estaria um Eusébio, um Jaime Graça, o Simões, o Toni… Alguma vez imaginei isso na minha vida? Eu não tinha clube. Eu queria era jogar na rua.

E qual é o seu clube de coração, afinal?
Pela primeira vez vou falar nisso. Há muita gente que diz que sou do Benfica, que sou do Sporting, que sou do FC Porto… Compreendo que não seja fácil perceber. Há muitos jogadores que representaram os três grandes, mas com pouca participação. Eu fui totalista em todos. Titular com todos os treinadores com quem trabalhei. Nenhum treinador me relegou para uma situação de suplente crónico. Eu sou bicampeão em todos. Tenho Taças de Portugal em todos. Tenho, pela seleção nacional, representação pelos três clubes… Representei os meus três clubes na seleção nacional. Perdoem-me a imodéstia. Não tenho de distinguir nenhum. Escolher um deles seria perder o respeito pelos outros. A minha estima divide-se em iguais partes por todos os clubes que representei, inclusive pelo Vitória de Setúbal. Tenho muito orgulho por ter encerrado a carreira no Vitória.

Não teria preferido terminar no FC Porto?
Não quiseram que eu terminasse a carreira no FC Porto.

E quem não quis?
Uma personagem que se chama Artur Jorge. Tínhamos sido colegas. Eu muito jovem, ele um senhor. Estivemos juntos no Benfica e, mais tarde, reencontrámo-nos no FC Porto. E o Artur Jorge, que me deveria ter dado todo o apoio – o apoio que deve ser dado a um jogador que sofre uma lesão grave –, funcionou ao contrário. Mas não me quero alongar sobre isto…

Não vai deixar a história a meio, pois não?
Ele não me defendeu, no clube. Havia uma certa máquina… Eu fraturei a tíbia no primeiro jogo do campeonato, em 1984/85, no Estádio das Antas. E quando regressei fui mal tratado. E no último jogo pelo FC Porto, na pré-época, foi engraçado… Jogámos no torneio Joan Gamper, em que vencemos pela segunda vez o Bayern Munique, numa final. Já recuperado das fraturas, fui titular e joguei os 90 minutos. Vencemos o torneio, onde inclusive recebo do jornal A Bola um elogio do presidente, de que a grande aquisição da época era a entrada do Eurico e que, chegado ao Porto, logo na semana seguinte, iríamos começar o campeonato. Mas fui relegado para fora dos 16, pelo treinador encomendado Tomislav Ivic…

Sentiu-se magoado com o treinador?
Na saída do Artur Jorge para o Matra Racing, o Ivic ficou no cargo, no FC Porto. O resto da equipa técnica não foi com ele e permaneceu com o Ivic. Entre essa equipa técnica estava Octávio Machado. Daí a encomenda. Comecei a sentir que qualquer coisa não estava bem. Pedi, com muita gentileza, para sair do clube, porque eu queria continuar a jogar à bola.

Sentiu-se empurrado para a porta da rua?
Sim, absolutamente. Nunca mais vi o comportamento da estrutura, que antes punha o Eurico no topo da confiança, de repente, passa a duvidar das minhas capacidades físicas, quando eu estava, como ficou comprovado, a 100 por cento. Caso contrário, não teria acabado a carreira no Vitória de Setúbal. É só ir aos registos. Ou seja, a mesma história que se passou com Fernando Gomes. Daí que o Gomes, meu colega, teve de procurar outro clube.

E assina pelo Sporting.
Também se inclui aqui o Jaime Pacheco, Romeu, Sousa, Gabriel… A saída foi o caminho. E para mim também. Não fazia sentido andar ali três anos para levar água e equipamentos aos outros jogadores.

E onde entra Pinto da Costa nesta história toda?
Pinto da Costa tem de entrar em tudo. Mas não foi ele que me levou para o FC Porto. Quem me levou para o FC Porto foi o meu mestre, o meu grande mentor, o grande arquiteto e engenheiro daquilo que é o FC Porto hoje: José Maria Pedroto. O mestre Pedroto é que, depois de saber que eu estava de malas aviadas, para sair do Sporting, quis contratar-me. Eu ia para Toronto, para onde iam alguns jogadores portugueses meter uns milhares de dólares na conta bancária, em final de carreira.

E Pedroto impediu-o.
Pedroto diz ao Inácio, que na altura estava em reunião para assinar contrato com o FC Porto: ‘Não, não vai nada para o Canadá. Ele tem de vir para aqui’. E após uma reunião com o presidente, em cinco minutos, Pedroto cativou-me. Queria-me no Porto no dia seguinte. Pinto da Costa está na parte boa, quando eu cheguei, está na parte boa enquanto eu era importantíssimo. Fui sempre titular indiscutível, até me lesionar. E deixei de ser titular. Mas não quero que se pense que o presidente é o aglutinador de tudo o que eu disse. Não é verdade. Pinto da Costa torna-se presidente em 1982, no ano em que fui para o FC Porto. A partir de então, o FC Porto começa a montar uma máquina que conduz a uma hegemonia, de muitos anos. E aqui há muito mérito do presidente. Alicerçou-se nas bases deixadas pelo Pedroto, que deixou o nosso mundo. Curioso… Pedroto dizia-me: ‘Eurico, enquanto eu aqui estiver, nunca vais sair deste clube’… E na altura da minha saída, o presidente teve uma reação que eu registo. Disse-me: ‘Mesmo que tu queiras ir embora, não te deixo, porque fazes falta ao balneário’. Mas eu, naquela altura, já conhecia a forma e a estratégia…

Há muita mágoa no seu discurso, quando fala de Pinto da Costa.
Sim. E vou morrer com essa mágoa. Eu jamais faria a Pinto da Costa aquilo que ele me fez. Eu tenho outro caráter. Tenho o lado do reconhecimento por todos. Há pessoas que não têm esse lado. Se eu não tivesse esta caraterística do reconhecimento, o único clube pelo qual eu teria de ser ‘doente’ teria de ser o Benfica. Mas eu sou reconhecido aos outros dois clubes. Porquê? Pelos respetivos presidentes? Não. Por via do emblema? Não. Mas por via, exclusivamente, dos adeptos. Se não fossem os adeptos… O sangue dos clubes não são as pessoas que os lideram. São os adeptos. E eu fui sempre acarinhado pelos adeptos dos três clubes. Agora, há uma coisa que podes escrever aí em letras garrafais…

Força.
É uma verdade de La Palice, mas o meu berço é o Benfica. Eu fui para o Benfica com 14 anos. Fui lá para as captações, na altura não existia o scouting… E nas captações fui internacional pelos juvenis, juniores e esperanças. Fui internacional e campeão nos seniores. Fiz a minha formação toda como homem no Benfica. É um orgulho imenso. Os três grandes estão todos ao mesmo nível, ao nível da grandeza, mas o clube que tem uma cultura, uma energia maior é o Benfica. Até o António Oliveira o reconheceu. Disse-o, com todas as letras, quando comparou o clube do coração dele, o FC Porto, com o Benfica. Eu até pensei: o Oliveira vai ficar queimado. Cheio de nódoas… Eu não renego o meu berço. Isso não renego.

Há pouco disse uma frase que registei: “Eu jamais faria a Pinto da Costa aquilo que ele me fez”. O que lhe fez Pinto da Costa?
O meu caráter humano, a minha educação, a minha dignidade, a minha forma de estar na vida são garantia de que essa frase faz sentido. Há pessoas que têm uma fama feita por uma extraordinária carreira. E essas pessoas serão lembradas pelo que fizeram em campo. Depois, acaba o brilho do sucesso e essa pessoa deixa para trás rastos de maldade, de falta de dignidade. E um ídolo deixa de o ser. Não quero deixar esse rasto. Não tenho medo da morte, mas tenho pena. Gostava de viver 400 anos. Não tenho medo de viver. Mas quando partir, o tempo da minha ausência será eterno. E a imagem que eu deixar durante o tempo da minha existência é a imagem que persistirá. Quero que a imagem eterna do Eurico seja a de uma pessoa honesta. E digo que nada do que me fizeram foi feito por maldade. Por isso é que eu não falo. Sabe porque é que o fizeram? Por inveja.

E o que é pior? Inveja ou maldade?
A inveja resulta de um dom de alguém, que provoca esse sentimento. Só provoca inveja quem é bom, quem tem caráter, quem é uma pessoa de boas famílias. Não é maravilhoso ser assim? A inveja é a arma dos incompetentes.

Não consegue apagar essa mágoa.
É impossível apagá-la, mas eu vivo bem com ela.

Viu barradas as portas em Portugal e partiu para um mundo onde não foi vetado.
Fiz-me à vida. Fui à minha vidinha. Tive de ir para fora, ganhar um terço do que poderia ter ganho se tivesse ficado em Portugal. Se alguém está há 20 anos sem trabalho em Portugal, como consegue sobreviver? Eu sobrevivi com muita humildade, com os meus, com a minha família e gente à volta dela, pessoas que têm a mesma filosofia de vida que eu tenho. E não há maior riqueza do que poder viver de forma tranquila.

E agora, Eurico?
Podia ser treinador até aos 70 anos… E ainda tenho sonhos. Eu estou como o aço!

Mas está no mercado, à espera de um telefonema para treinar uma equipa?
Hoje ambiciono mais ser diretor-geral para o futebol do que treinador. As experiências que capitalizei seriam mais adequadas a essa área. Vejo que há nos clubes muita gente que anda lá só para conseguir bons resultados financeiros para os presidentes e para as máquinas financeiras que estão montadas à volta dos clubes.

E porque é que o Sporting não ganha? Porquê tanta instabilidade no clube?
Sei porque é que o Sporting não ganha. Desde que conheci o Bruno de Carvalho assumi uma posição. Eu quando disse que o Sporting iria arrepender-se de deixar sair Bruno de Carvalho… O Sporting não ganha porque não tem gente séria, experiente e profissional. O Sporting mete lá cunhas, cunhados, subservientes. A única coisa que têm é o cartão de sócio. São do Sporting desde pequeninos… E não é disto que os clubes precisam. Precisam dos melhores, sejam eles de que clube forem.

Essa crítica ao Sporting pode ser considerada um elogio ao Benfica.
Não. O Benfica está naturalmente bem estruturado.

E o FC Porto?
Continua estabilizado, ainda que de forma diferente de outras décadas. Agora, o Sporting é o mesmo. A instabilidade permanece. O Sporting tem condições, mas precisa de gente competente.

As sucessivas trocas de treinador são um efeito dessa incompetência?
Repare-se que depois da saída do José Peseiro ninguém se preocupou em encontrar alguém com mais conhecimento do que o Peseiro. Optaram pelo miúdo, o Tiago Fernandes. Que experiência tem o Tiago Fernandes para ser treinador do Sporting? A seguir, vem o Keizer. Depois, o Silas… Agora, o Rúben Amorim. Destes cinco treinadores, Peseiro é o único com experiência e licenciado para dirigir um clube com aquela grandeza e com aqueles adeptos indefetíveis, por quem me apaixonei. Contratam treinadores que não estão habilitados a ‘puxar as orelhas’ aos jogadores, durante os jogos. Meu amigo, não se ganham jogos nos treinos.

E Jorge Jesus?
Não quero falar de Jorge Jesus, porque há o antes, o durante e o depois. Não quero abordar esse caso, porque os últimos treinadores não tinham arcaboiço para a liderança técnica de um clube como o Sporting. Alguns jogadores são mais experientes do que os treinadores que os lideraram.

E se o Eurico fosse responsável pelo futebol do Sporting, quem contrataria?
Vítor Oliveira… Vítor Oliveira, caramba.

Porquê?
Não tendo, nesta fase, milhões para contratar um treinador mundial, o Sporting teria de ir buscar – e cativar, não com dinheiro, porque o Vítor não se deixa cativar pelo dinheiro, mas pelo apoio, suporte sólido, respeito pelo trabalho, organizacional – alguém com o perfil do Vítor Oliveira. Pelo passado e presente, é o homem que merece terminar a carreira num clube com grande prestígio. Era uma má opção?

Porque é que Vítor Oliveira não é olhado pelos grandes com esses olhos? Também é vítima de algum ‘ponta de lança’?
[Eurico ri].

Como antevê o pós-Pinto da Costa, no FC Porto?
Eu corroboro a cem por cento com o reconhecimento à gestão do presidente do FC Porto. Atenção: estou a falar do presidente do FC Porto. Toda a gente sabe que o presidente do FC Porto fez grande um trabalho, que permitiu ao clube conseguir resultados que dificilmente serão igualados. Mas eu digo o que penso e digo o que sei. Pinto da Costa deu continuidade, à moda dele, a um trabalho esboçado pelo falecido Pedroto, o mestre, o obreiro daquilo que é o FC Porto.

Mas seguiram-se décadas de liderança de Pinto da Costa, que tem méritos.
Certo. Não foi Pedroto que construiu o FC Porto de hoje. Nem nos próximos mil anos, acho eu, o FC Porto arranjará um presidente que tenha dado tanto ao clube como o Pinto da Costa. Como presidente. Mas também não oiço ninguém a falar do Pinto da Costa que não seja como presidente.

E o que é Pinto da Costa como homem, na sua opinião?
Quase nunca oiço falar dele como pessoa. Só se fala como presidente.

E qual é a ideia que tem de Pinto da Costa como pessoa?
Não sei. Não falo. Eu prognosticava – e acho que fazia jus ao brilhantismo de todo o trabalho do presidente do FC Porto – que ele, numa determinada altura, dissesse assim: ‘agora quero ficar na minha cadeirinha’. E depois escolhia três, quatro pessoas para dar continuidade ao seu trabalho. Não aconteceu…