“Academia não trata só dos pés, trata também da cabeça”
Sempre que se fala do sucesso do sector de formação do Sporting, há um nome salta à vista: Aurélio Pereira, responsável pelo recrutamento. Criou este departamento em 1998, mas, mesmo após 20 anos nesta área, mantém um vício: não é “capaz de passar um local onde estejam miúdos a jogar futebol sem parar o carro para ver”.

O Sporting é um clube formador. O que é isso de formar jogadores?
É encontrar jovens com habilidade natural. E que tipo de jogador formamos na Academia? Com cabeça, tronco e membros. O número de ingredientes que contribuem para o sucesso é menor dos que levam ao insucesso. Hoje temos todas as condições, com uma equipa extraordinária de pessoas e onde se respira um ambiente de sã camaradagem, e isso passa para os jogadores. Mas não podemos ignorar aquilo que se fez sem Academia.

Que atletas entram na Academia?
Aqui só entram bons jogadores e talentos. Mas os talentos não são completos e os bons jogadores, com trabalho, atitude, perseverança, auto estima e disciplina, podem chegar a ser grandes jogadores. É este o grande desafio, porque os talentos passam por aqui de uma forma rápida e não é possível segurá-los. Nenhum clube em Portugal tem capacidade para manter um Ronaldo ou um Nani por muito tempo. Depois há dois tipos de talentos, os que são completos, com cabeça, tronco e membros, e aqueles a quem falta cabeça.

A que idade se descobrem?
É sempre possível ver talento aos 7 anos, até pela maneira como trata a bola. A primeira vez que eu vi o Dani jogar estava de férias com a família em Tróia e vi uma criança a brincar com uma bola, abeirei-me dele e foi aí que tudo começou. Ele tinha 7 anos, era um talento fantástico.

É esse o seu trabalho?
É esse o meu vício. Eu não sou capaz de passar um local onde estejam miúdos a jogar futebol sem parar o carro para ver. Faz parte. Mesmo quando vou fazer exercício, primeiro vou ver quem está a jogar futebol. De vez em quando lá aparece um miúdo.

É assim que recruta?
Não. Em criança fui treinar ao Sporting juntamente com quatro amigos e quando chegamos a Alvalade estavam lá cerca de 800 miúdos. Havia duas pessoas a mandar seguir para nos equiparmos e apercebi-me que só estavam a entrar os maiores e os outros iam para casa… só fiquei eu. Ver os miúdos a voltar para casa de lágrima no olho e pé descalço marcou-me profundamente. Era uma forma de seleccionar com a qual eu jamais estaria de acordo. Curiosamente, passados alguns anos estava eu do outro lado a escolher e a mandar para casa. Só que comigo jamais alguém foi para casa sem treinar, nem que eu tivesse de estar ali até à meia-noite, pois prefiro um grande jogador a um jogador grande.

Como se descobre um talento?
Fazemos a selecção muito cedo. Detectar é procurar e hoje temos já uma estrutura organizada de observação a todos os níveis. Tudo o que são miúdos a mexer nós observamos, depois seleccionamos aqueles que têm uma excelente relação com a bola.

Quem faz esse trabalho?
Os chamados olheiros e observadores que fazem a cobertura total do País, tal como fazem os nossos adversários. Temos uma grande competição na escolha dos atletas. Normalmente, o recrutamento faz a detecção, depois a parte técnica aprova ou não em função daquilo que vê. Porque uma coisa é vê-los a jogar no seu meio, outra é ver como se comportam a jogar com e contra os que já cá estão. Não podemos é deixar que o jogador sinta que vai fazer um exame e que pode chumbar, temos de o integrar, esse é um factor decisivo. Hoje, o atleta é mais fraco psicologicamente do que era no passado. Um jogador superprotegido pelos pais não vai dar seguramente um grande jogador. Já o jogador oriundo de famílias onde não têm tempo para isso é mais forte, mais resistente.

É por isso que é importante ter um Gabinete Psicopedagógico?
Os clubes têm de ter capacidade para poder dialogar com os pais e eu sou normalmente a primeira cara que a família vê. Por vezes querem entrar mais na esfera desportiva do que na sua, de educadores. Isto não é uma crítica aos pais, mas é assim que funciona. Quando um jovem não joga o tempo que o paizinho quer e eles mostram descontentamento, eu digo sempre que ele devia ir a pé a Fátima agradecer ter filhos numa instituição chamada Sporting, onde estudam, são acompanhados e sabem que estão em segurança.

“No Sporting o mau aluno não tem lugar.” Este é o lema?
Não, não é esse o lema. Criámos uma Academia essencialmente para formar jogadores, não vamos ignorar isso. A filosofia da Academia é essa. Quando escolhemos o nome de Academia Sporting em vez de centro de estágio não foi por acaso, porque a Academia não trata só dos pés, trata também da cabeça. Maus alunos, felizmente temos poucos.

Que talento descobriu mais cedo?
Foram dois: Futre e Ronaldo. Tinham a mesma paixão pelo jogo e as mesmas ganas de ganhar. Não paravam quietos enquanto não tivesse uma bola para brincar. O Futre, vi-o numa captação após o 25 de Abril. Jogava nos Estabelecimento Cancela. Fui ver um jogo e vi entrar aquele ratinho, que me impressionou, era muito mais pequeno que os outros, mal podia com a bola e que só sabia ir para a frente, nunca vinha para trás com a bola. Havia outro jogador que nos interessava, o Júlio. Trouxe-o para o Sporting e perguntei-lhe: “Quem é aquele miúdo baixinho que entra de vez em quando?” “É o Paulinho, mas ele não tem idade, mister, anda a jogar com a cédula de outro.” Pedi-lhe para o trazer um dia para um treino e num exercício ele passou com uma velocidade estonteante com a bola entre os cones. Chamei logo o César Nascimento, treinador dos juvenis, e ele ficou com os olhos arregalados.

E o Cristiano Ronaldo?
No primeiro treino que ele fez impressionou logo o Osvaldo Silva e o Paulo Cardoso, que me aconselharam a ir vê-lo. E realmente o miúdo impressionou-me, ainda por cima a treinar com jogadores mais velhos. A dada altura demonstrou um carácter fortíssimo: estava a ser marcado por um colega mesmo em cima e ele vira-se para trás e diz: “Ó miúdo, tem calma.” Já não foi preciso ver mais. Eu não podia deixar ir embora o miúdo com medo que me apontassem o dedo mais tarde porque gastei cinco mil contos mal gastos.

Satisfaz a evolução dos jogadores que chegaram à equipa principal?
Sim. Estão praticamente na fase final de implementação no futebol profissional. É sempre importante terem esta estabilidade, dentro da instabilidade que acontece no futebol jovem logo a seguir ao sucesso repentino. O treinador [Paulo Bento], que os treinou antes e depois, tem sabido gerir bem a sua integração no futebol profissional e as expectativas dos próprios jogadores e adeptos. As pessoas têm de ter paciência e deixar crescer os atletas. Há casos que crescem mais depressa, outros que demoram mais.

Imagina o Sporting sem formação?
Se imagino? Não posso adivinhar o futuro. Quando se faz uma academia não se pode voltar atrás. Mas quem traça a estratégia é a administração.

nota: retirado de uma entrevista dada, em 2008, ao DN