Se existe coisas que eu sempre valorizei nas amizades, foi a prontidão, muitas vezes demente, com que aceitamos andar à porrada. Não perguntamos se os nossos amigos têm razão. Cerramos os punhos, damos e levamos até sorrir ou fugir. E conjunto. Não fica ninguém para trás. Ontem, senti um arrepio percorrer-me quando parte da norte, uma lateral e parte da central, foram ao baú buscar aquele velhinho “Sporting clap clap clap Sporting” e levaram atrás de si todo o estádio. Vi o movimento parar na sul, à espera de perceber que som era aquele e, de um momento para o outro estávamos todos, os 40 mil e qualquer coisas, a correr em socorro dos 11 que, em campo era encostados à parede por um sistema que perdeu de vez a vergonha. Aquilo saíu da alma e da alma sai, também, tudo o que esta equipa faz. E é tanto.

Claro que me indignou as pasmaceira que levou a que sofressemos o primeiro golo (e continua a indignar, mesmo depois de ver as imagens que mostram que Adrien foi impedido de tentar estancar o remate), mas o que se seguiu foi – e qualquer pessoa que tenha jogado à bola sabe disso – avassalador. Ninguém se lembrava que Semedo tinha estado fora, ninguém se lembrava que Zeegelaar ainda está a sacudir o peso de um camisola que parece chumbo (e como cresceu o holandês ao longo do jogo, terminando-o a desafiar o segundo amarelo que o tarefeiro lhe queria mostrar), ninguém se lembrava que Mané tinha estado lesionado ou podia ter sido emprestado (bem vindo de volta, companheiro). Com seis jogadores da formação na equipa inicial (e mais três no banco), o Sporting atacava uma, outra e outra vez, frente a um adversário enfiado no seu meio-campo defensivo e com carta branca para fazer as faltas que bem lhe aprouvesse.

Tão branca que, após assistência de Slimani, Mané, quando se prepara para rematar, é empurrado de forma claríssima. Penalti por assinalar, amarelo por mostrar. O puto Mané levanta-se, de boca aberta, e minutos volvidos aparece ao segundo poste a tentar emendar belíssima combinação entre João Mário (que monstro estás tu, João!) e Ruiz. Depois, seria o costariqueno a espalhar magia: João Pereira, um dos melhores em campo, faz mais 100 metros e cruza certeiro; Ruiz mata no peito e vê o golo morrer numa defesa por instinto. O grito de golo paira em Alvalade e na recarga Adrien atira muito por cima. Mãos na cabeça dos adeptos, punho cerrado do capitão, irritado consigo mesmo. Tão irritado que o que se seguiu entra directamente para os melhores golos do ano a nível mundial. Aquele ziguezaguear, por um, por dois, desbravando caminho dentro da área até sentir que a mira estava certeira e arriscar um tiro só ao alcance de Poe Dameron, comandante da Resistência. O disparo sai teleguiado, embate com estrondo no poste e anicha-se na rede.

O capitão voltaria a estar em destaque dez minutos depois, quando o bandalho Cosme resolve mostrar-lhe o amarelo só porque sim. Jesus pergunta ao quarto árbitro porque raio é que o se jogador viu amarelo e diz-lhe que aquela merda não é amarelo em lado nenhum. As concubinas de serviço arroga-se de serem putas finas e, indignadas, cozinham a expulsão do treinador do Sporting (Nelson também viria a ser expulso e Raul José levará um processo por aquilo que disse no flash, portanto contra o Rio Ave será Octávio a usar a braçadeira de treinador). A raiva crescia e o karma mexia. João Mário recupera uma bola na cabeça da área e leva uma porrada (mais um amarelo por mostrar, mas também foram tantos…), a bola sobra para Mané que decide fechar uma bela primeira parte em grande estilo. Entra pela área, faz gato sapato do defesa, contemporiza e diz a Ruiz “toma lá, é só encostar”. Estava dada a cambalhota (mais uma, esta época), no marcador.

Ao intervalo, os números eram esmagadores e só deixavam o sentimento de que a diferença no marcador era curta. Aliás, a missão, no regresso, passava por ampliá-la o mais rapidamente possível, não estranhando que William Carvalho tivesse dado lugar a Gelson Martins. Adrien é varrido a poucos metros do árbitro, que deixa o cartão no bolso (uma vénia para a capacidade do 23 escapar ao segundo amarelo que Cosme tanto queria mostrar-lhe), dando o mote para números de circo ainda mais enervantes. O Sporting carregava, a bola atravessava a área academista uma e outra vez, mas a machadada final no jogo não aparecia e dava permissão ao Machado de serviço para deixar bem claro ao que vinha: saída despropositada de Patrício, cabeçada de um jogador da Briosa, Ewerton como último jogador estorvado por um adversário num dos mais claros foras de jogo da época 15/16. Tão claro que o fiscal de linha não hesitou em levantar a bandeirinha. “Mas o que é que este gajo está a fazer?!?”, pensou Cosme. E correu em direcção ao seu auxiliar, acabando por desautorizar a decisão, correcta, que este lhe havia indicado. Caldo completamente entornado.

E para os que defendem que isto é invadir o campo e partir um gajo destes, pensem porque será que o maior gozo nos é feito em própria casa. Quantos jogos ficaríamos privados da nossa casa, do nosso estádio, do nosso vulcão? Há quantos anos não se sentia que quem se senta na bancada corre, luta, chuta ao lado de quem está no relvado? Há quantos anos não se sentia que quem está no relvado olha em volta e ganha confiança de cada vez que algo corre mal? E foi tudo isso que voltou a acontecer, com Pereira, Adrien, João Mário e Gelson a serem levados às cavalitas por todos nós, podendo, assim , carregar a equipa para a frente. Uma frente onde Montero se juntaria a Slimani para meia-hora de sufoco ao adversário que já não passava do meio-campo com a bola dominada.

O colombiano não demoraria a entrar no jogo, lendo na perfeição que aquele lançamento de linha lateral tinha que ser para Slimani. O argelino correu como cavalo selvagem em busca da bola, ultrapassou toda a defesa, mas viu o redes dizer-lhe que não queria enfiar na cabeça aquele chapéu. Depois seria Ruiz, lançado por Montero, a parar na canhota como bola e pé fossem um só, mas perdendo o duelo à saída do guarda-redes. Aderlan puxava e empurrava Gelson, uma, duas, três vezes. Até o derrubar e ver o segundo amarelo. Livre. Montero ajeita e tenta o remate, que sai em arco, mas à figura. O camisola dez tinha entrado bem e queria escrever o seu nome no jogo (e não era com aquele momento Maradona em que ferra três se uma vez e centra de letra). João Pereira ensaia mais uma subida e a bola encontra o peito de Montero; a recepção é de craque, o remate é de raiva. A explosão de felicidade que se segue parece não afectar “Monterito”, mas, lá na sua própria bolha, ele sorri tanto quanto nós. E mais terá sorrido quando, num grito único, 40 mil rugidos gritam que o resultado está em 3…1! Assim, sem nada ensaiado, porque é assim que os amigos funcionam. Porque, ontem, uma vez mais, a vitória foi em nome do local de culto onde equipa e adeptos são um só. Alvalade.