Esta semana, mais do que oferecer a minha visão sobre um determinado tema, quero lançar algumas questões para debate. Qual seria a reacção do leitor se descobrisse que em Portugal não houve apenas 5 campeões nacionais, mas sim 8? Como reagiria se ficasse a saber que as três equipas “esquecidas” são o Carcavelinhos, o Marítimo e o Olhanense? O que diria se se desse conta de que o Belenenses tem 4 campeonatos nacionais no seu currículo e não apenas um? E que o Sporting e o FC Porto têm, respectivamente, 22 e 30 títulos máximos e não os 18 e 27 que lhes são atribuídos oficialmente? As conclusões ficarão ao critério de cada um, mas julgo haver espaço suficiente para que a contagem actualmente em vigor seja posta em causa.

Em primeiro lugar, reconheço que, à primeira vista, trazer este assunto numa altura em que um rival acaba de se sagrar campeão pode parecer uma tentativa desesperada de vasculhar a História com o objectivo de engrossar um palmarés que nos últimos anos teima em não aumentar. Mas, numa altura em que o 33º campeonato do Benfica tem sido tema de destaque, penso que esta discussão vem a propósito. Tudo se prende com o facto de haver 17 campeonatos entre os anos 20 e 30 cuja existência é, hoje em dia, pura e simplesmente esquecida e substituída pela inclusão de 4 ligas experimentais. Não sei quem começou a fazer a contagem de maneira incorrecta, nem se o fez de forma consciente ou não. A verdade é que o Sporting é o emblema que sai mais lesado. Em todo o caso, o Benfica e os seus adeptos não terão de se sentir atingidos, uma vez que o seu número de títulos não se altera. Ao contrário, o de todos os outros clubes campeões nacionais – à excepção do Boavista – é puxado para baixo. Vejamos:

– Entre 1921 e 1938 disputou-se o Campeonato de Portugal (CP), em regime de eliminatórias. Esta competição decorria a par dos Campeonatos Regionais (de Lisboa, do Porto, etc.), que serviam de apuramento.

– O Sporting conquistou o título por quatro vezes: em 1922/23, 1933/34, 1935/36 e 1937/38. O FC Porto também ganhou quatro campeonatos, o Benfica e o Belenenses três. O Carcavelinhos, o Marítimo e o Olhanense arrecadaram um cada um.

– Nas crónicas da época, os vencedores foram sempre referidos como Campeões Nacionais.

– Em 1934/35, contudo, foi criado um campeonato experimental, no regime de todos contra todos. Era o Campeonato da Liga (CL) e teve e uma curta existência – somente quatro épocas, até 1937/38. O vencedor era denominado Campeão da Liga; o título de Campeão de Portugal continuou a ser atribuído.

– Em 1938/39 decidiu-se o fim do CP e do CL e começou o Campeonato da I Divisão, em regime de todos contra todos e reconhecido oficialmente. Foi também criada a Taça de Portugal.Foi somente aqui que ficaram definidos os moldes que ainda hoje se verificam: o Campeão Nacional passou a decidir-se através do campeonato, servindo a Taça de competição complementar.

– Nos 4 anos em que coincidiu com o CL (ou liga experimental), o CP foi sempre o que fechou a época – era o mais importante e o mais aguardado. O vencedor do CL (disputado entre Janeiro e Abril/Maio) era, como já se disse, o Campeão da Liga, ao passo que o vencedor do CP(entre Maio e Julho) era o Campeão de Portugal. Actualmente ainda há quem lute contra o esquecimento e, contra a corrente, cultive essa memória, como exemplifica este cachecol do Belenenses:

– No entanto, contra toda a lógica, actualmente são as ligas experimentais (CL) que contam como campeonatos oficiais – e não o CP, como sempre ocorreu entre 1921 e 1938. Em 4 temporadas de CL, o Benfica conquistou 3 títulos da liga e o FC Porto 1. São estes 4 anos que geram toda a controvérsia.

De facto, hoje em dia a versão oficial apresenta a competição experimental como a precursora da Primeira Liga, remetendo o CP para a posição de “antepassado” da Taça de Portugal. No entanto, parece-me evidente que, entre 1921 e 1938, o objectivo do CP era, como o nome indica, apurar o Campeão Nacional e não o simples vencedor de uma “taça” sem qualquer propósito. Se o Campeonato de Lisboa estabelecia qual a melhor equipa da capital, o CP fazia essa distinção ao nível do país inteiro. As pessoas queriam saber quem era a melhor equipa nacional e o CP, ano após ano, dava-lhes essa resposta. A competição experimental serviu para constatar se seria ou não viável a criação de um campeonato em regime de todos contra todos a nível nacional. Quatro anos chegaram para perceber que sim, tendo depois surgido a actual liga. Mas a validade dos campeonatos disputados entre 1921 e 1938 é inquestionável. A História não pode ser apagada.

Poder-se-ia argumentar que o aspecto do troféu do CP era idêntico à Taça de Portugal – provando assim que o primeiro deu origem à segunda – e que o facto de a primeira competição a nível nacional em Portugal ser a eliminar e não em formato de liga faz com que perca o estatuto para a liga experimental. Relativamente à primeira observação, os dois troféus só são idênticos porque, em 1938 (e nunca antes!) se entendeu passar a estabelecer um paralelismo entre CP e Taça de Portugal, servindo o troféu do CP como modelo para o da nova competição. Sobre a questão do formato da competição, lembro que isso está longe de ser caso único e que as mudanças são normais no futebol. Da mesma forma que ninguém contesta as duas vitórias do Benfica na Taça dos Campeões Europeus (na altura disputava-se apenas através de eliminatórias) nem se coíbe de as juntar à contabilidade da actual Liga dos Campeões, também as vitórias do Sporting e dos outros clubes no CP deveriam ser contabilizadas como títulos nacionais. Volto a dizer que nem mesmo o Benfica sairia prejudicado, uma vez que o seu número de triunfos nesta competição e na liga experimental é o mesmo: 3. Além do mais, em vários outros países houve mudanças na estrutura dos campeonatos, mas não é por isso que os clubes deixam de contabilizar os títulos de campeão anteriores a essas alterações. Por exemplo:

– em Itália, a Serie A disputa-se nos moldes actuais desde 1929, embora entre 1898 e essa data tenha existido um torneio híbrido (eliminatórias e uma espécie de liguilha). O Génova e o Pro Vercelli conquistaram todos os seus scudetti antes da existência da Serie A e ainda hoje essas suas vitórias são reconhecidas;

– na Alemanha, a Bundesliga foi criada apenas em 1963. O Nuremberga ganhou 8 das suas 9 ligas antes da criação do actual formato. O Schalke foi campeão 7 vezes – 6 delas ainda durante o III Reich – e todos os títulos são contabilizados. E note-se que, na Alemanha, o campeonato jogou-se em regime de eliminatórias até 1950! Porém, ao contrário do que aconteceu em Portugal, esta competição nunca foi confundida com a Taça. Tê-lo feito seria uma tremenda injustiça, uma vez que se estaria a posteriori a negar aos clubes a glória que todos eles tinham alcançado ao longo dos anos.

Acresce a isto o facto de, em Inglaterra, o campeonato já ter passado por inúmeras mudanças. O Liverpool, por exemplo, nunca venceu nenhuma Premier League, mas continua a contabilizar 18 campeonatos. E não poderia ser de outra forma. Retirar aos clubes, passados tantos anos, os títulos de campeão que eles conquistaram, não só é injusto como subverte a realidade do desporto no país em questão. Se, noutras ligas, houve o bom senso de nunca negar campeonatos a clubes com base em argumentos criados décadas depois da disputa dessas competições, em Portugal esse não foi o caso.

Antes de terminar, coloco apenas mais duas questões:

– Mesmo que o argumento de equiparar o CP à Taça de Portugal estivesse correcto (e não está, como tentei demonstrar), por que razão hoje em dia os CP não são sequer contabilizados juntamente com as Taças de Portugal mas sim, em lugar disso, completamente esquecidos?

– Por que é que certas apreciações variam conforme os clubes? Já falei aqui das duas Taças dos Campeões ganhas pelo Benfica, a que se junta outra do FC Porto e uma Liga dos Campeões ganha pelos azuis-e-brancos. A melhor prestação de sempre do Sporting nessa competição foram os quartos-de-final. No entanto, por qualquer motivo bizarro, em 2008/09 muitos meios de comunicação não cessaram de dizer que a tristemente célebre eliminatória com o Bayern de Munique (oitavos-de-final) era “a melhor campanha de sempre do Sporting” naquela competição…

Voltando à temática do número de campeonatos conquistados, estranho que nem o meu clube nem o FC Porto, o Belenenses, o Olhanense ou o Marítimo (o Carcavelinhos já não existe) contestem a actual contagem e tragam este assunto para discussão. Mas creio haver margem suficiente para que tal aconteça. Mudar as regras do jogo vários anos depois e com efeitos retroactivos, tal como se fez a partir de 1938 relativamente ao CP, parece-me tão errado quanto grave. Urge apurar a verdade e homologá-la o quanto antes. Penso, portanto, ser possível afirmar que o verdadeiro “álbum de ouro” do futebol nacional é o seguinte:

– BENFICA: 33 campeonatos (mantém-se igual)

– PORTO: 30 campeonatos (em vez dos 27 oficiais)

– SPORTING: 22 campeonatos (em vez dos 18 oficiais)

– BELENENSES: 4 campeonatos (em vez do único que lhes é atribuído)

– BOAVISTA, OLHANENSE, MARÍTIMO E CARCAVELINHOS: 1 campeonato (nas contas oficiais, apenas o do Boavista é reconhecido)

 

Dito isto, importa recordar os nomes dos campeões nacionais do Sporting Clube de Portugal que foram injustamente apagados da História por um modelo de contagem de campeonatos no mínimo discutível. Estes atletas são duplamente campeões, porque não só suplantaram todas as outras equipas como tiveram de lutar contra o esquecimento a que foram votados. Aqui ficam:

1922/23: Francisco Stromp, Jorge Vieira, Filipe dos Santos, Rodrigues Ferreira, Torres Pereira, João Francisco, Jaime Gonçalves, Henrique Portela, José Leandro, Emílio Ramos, Cipriano, Fernandes, Amadeu, Lieber e Quintela.

1933/34: Adolfo Mourão, Correia, Jurado, Joaquim Serrano, Rui Araújo, Faustino, Manuel Soeiro, Vasco Nunes, Reynolds, Jóia, Cervantes, Jenny, Artur Dyson, Belo, Estrela, Pires Rebelo, Forno, Farrin, Rosado, Fonseca e Reis.

1935/36: Adolfo Mourão, Rui Araújo, Pireza, Correia, Manuel Soeiro, Vianinha, Francisco Lopes, Jurado, Faustino, Possak, Galvão, Artur Dyson, Raúl Silva, João Azevedo, Joaquim Serrano, Rui Carneiro, Jaguaré, Abrantes Mendes, Vasco Nunes, Costa, Alcobia, Manuel Marques, Pires Rebelo, Terruta, Carreira e Fernando.

1937/38: Adolfo Mourão, Fernando Peyroteo, Aníbal Paciência, João Azevedo, Manuel Soeiro, Pireza, Jurado, Manuel Marques, Rui Araújo, Galvão, João Cruz, Heitor, Joel, Daniel Duarte, Francisco Lopes, António Martins, Joaquim Serrano, Belarmino e Manuel da Silva.

Nota: um trabalho mais exaustivo e credível poderá ser feito com o acesso aos arquivos da FPF

Texto escrito por João V. Sousa, in Bola na Rede

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