No passado domingo, antes de rumar ao estádio para assistir ao dérbi, um benfiquista de outra geração contava-me que, antigamente, quando ia ao futebol com os amigos, ficavam todos juntos no peão. Ao que parece, junto a esse Estádio de Alvalade perdido na memória, existia uma série de barraquinhas onde se vendia bacalhau assado. Uma espécie de roulotes, para onde o pessoal se dirigia depois de terminado o jogo dos jogos. «Do Estádio até às barraquinhas, discutíamos futebol. Assim que chegávamos ao bacalhau, acabava e falávamos de nós, das nossas vidas, da nossa amizade!».

Disse-lhe que, hoje, isso era impossível. Não porque não tenha amigos benfiquistas com quem fale de nós, das nossas vidas, da nossa amizade. Antes, porque é de todo impensável esse clima de que há coisas bem mais importantes na vida do que o futebol. A começar pela própria vida. Não lhe falei da tarja no futsal, porque não me apetecia chatear-me. Muito menos me apetecia estragar aquelas memórias que fui capaz de visualizar sem nunca lá ter estado. A verdade é que desde sexta-feira que eu tinha a certeza que algo não ia correr bem. E, não, não me refiro ao resultado, porque quanto a isso e ao contrário daquela figura balofa a quem pagam para debitar alarvidades na televisão, tinha a certeza que o Sporting seria a única equipa a poder ganhar o jogo.

E porquê sexta-feira, poderão estar vocês a interrogar-se. Porque sexta-feira, muitos dos que passaram na segunda circular foram brindados com uma tarja onde podia ler-se “Na terra, o Rui Mendes foi ao ar”. Depois, sábado, a tal traja “very light 96” e o cântico «amanhã há mais!». E é por isso que, passados quatro dias, continuo a questionar-me sobre que mais sinais seriam precisos para se perceber que algo esta premeditado? É por isso que , passados quatro dias, continuo a questionar-me como foi possível terem entrado em Alvalade tantos petardos que, por momentos, Alvalade soou a Baghdad?

Muito provavelmente, é por isso que reina um inacreditável silêncio sobre o que se passou. Claro que para quebrar o silêncio dizendo merda, como, mantendo o registo a que nos habituou, fez o director de comunicação do benfica, vale mais estar calado. E, muito sinceramente, nunca esperei que alguém da actual direcção desse clube viesse repudiar e afastar-se desses actos. Quando me sinto incomodado com o silêncio, faço-o na ausência de uma tomada de posição por parte do Secretário de Estado do Desporto, do presidente da Federação Portuguesa de Futebol ou do presidente da Liga de Clubes. Zero. Talvez achem, também, que tudo isto não passa de folclore.
O problema é que isto vai muito além de mero folclore e o que parece passar ao lado de muito boa gente é que, ontem, podia ter havido novo dérbi. Que condições existiriam para o Sporting é jogar à luz? O que aconteceria depois dos actos do passado domingo à noite? Há quem pense nisso ou só voltamos a conversar quando voltar a morrer um adepto?

Este é um silêncio ensurdecedor. Preocupante. E hipócrita, pois numa altura em que fica bem dizer ‘je suis Charlie’, fomenta-se a impunidade de quem quer transformar o futebol num universo onde merece a morte quem usa um cachecol de cor diferente. E a propósito de hipocrisia, não, não sou hipócrita ao achar que este é um problema exclusivo de claques de outros clubes. Não gostei das tarjas que foram exibidas, em resposta à do futsal (confesso que cheguei a Alvalade na esperança de, quando marcássemos um golo, ver ser levantada uma tarja homenageando Rui Mendes). Tal como abominei o apedrejar da carrinha ou o incêndio provocado na luz. E não me esqueço da revolta que me causou, depois de ter caido do varandim, há quase 20 anos, ter visto pessoal a apedrejar o médico do fcp que tentava socorrer quem estava entre a vida e a morte.

Creio que a questão é simples: é necessário, de uma vez por todas, assumir que entre milhares de pessoas que fazem parte das claques, tal como eu já fiz como sócio da Juve Leo, há muitas que as procuram transformar em algo mais do que uma massa de apoio ao clube do coração. Se estou a pedir que se acabe com as claques?!? Longe disso. Sou acérrimo defensor das claques enquanto parte do espéctáculo e enquanto apoio incontornável à equipa. Acho que acabaram por conquistar demasiado poder e, hoje, interferem inapelavelmente em muitas das decisões que os clubes tomam. Umas vezes para o bem, outras vezes para o mal. Mas para lá desse lado político, venha o primeiro hipócrita contrariar a teoria que, em diversos casos, se não fossem as claques os estádios estariam às moscas.

Estádios que me habituei a ver cheios. Na década de 80. E na década de 90. Depois, depois veio a televisão e a moda dos jogos à noite. Pior. A moda dos jogos à noite ao domingo à noite. Ou à segunda. Ou à sexta. Como que dizendo às famílias que vinham de longe para esquecerem a ida à bola. Olhamos para quem gere o nosso futebol e eles assobiam para o lado. Aliás, até fizeram questão de voltar a entregar o patrocínio da Liga a uma operadora de televisão, fechando o puzzle onde o tal canal de desporto é que decide a que horas se joga.
É mais fácil dizer que são as claques que afastam as famílias dos estádios. Então… e o que é feito para controlar esses danos? Nada. Importa é piscar o olho a Espanha e lutar para manter os fundos. Para manter tudo na mesma. É por isso que se assobia para o lado face ao que aconteceu no fim-de-semana. É por isso que vivemos num futebol de hipócritas, que aponta o futebol inglês como o expoente máximo de espéctáculo, mas que ignora tudo o que de bom os ingleses têm feito para promover o seu futebol. Horários. Claques. Tudo solucionado.

Angustiado como tudo isto, comento com um colega meu o quanto me incomodou ver pais a sair com os filhos, à pressa, sob uma chuva de petardos. Digo-lhe que alguns desses miúdos tinham sete ou oito anos, ao que ele me responde “é uma irresponsabilidade levar miúdos dessa idade para um jogo de alto risco”. Engulo em seco. E, enquanto pai, cresce dentro de mim uma raiva pela forma como se encara tudo isto.

Eu sei que jamais vou, depois de um dérbi, comer bacalhau assado, perto do estádio, com amigos benfiquistas. Mas não admito que me digam que não posso partilhar o jogo dos jogos com as pessoas que mais amo. Não admito que me digam que por causa de algumas centenas de marginais, de assassinos, de parasitas sociais, de cobardes que como as hienas só atacam em matilha, tenho que adaptar os meus planos de ir à bola com a minha filha, construídos na minha cabeça a partir do momento em que ela nasceu. A raiva que vivia adormecida desde 96, quando podia ter sido eu, o meu pai ou o meu irmão a levarem com um dos cinco ou seis very lights que foram apontados à nossa bancada, voltou a agitar-se. E perante o silêncio de quem devia assumir responsabilidades, é esta a forma que encontro de gritar o mais alto que consigo. Gritar que esta devia ser uma luta sem clube, porque em todos os clubes há mais adeptos de futebol do que marginais. Gritar que me recuso a aceitar que quando a minha filha voltar a perguntar-me «pai, posso ir contigo ao futebol?», a minha resposta seja outra que não um imediato e sorridente “claro que podes, amor!”