DuarteGomesCaso não tenham reparado, o árbitro Duarte Gomes colocou um texto no seu Facebook. Passo a transcrever:
“E se de repente eu fosse o adepto e tu o árbitro? E se de repente trocássemos de lugares? Tu serias eu e eu seria tu. Tu pegavas no apito e cartões, usavas os meus equipamentos de jogo e ias lá para dentro. Eu vestia a T-Shirt do teu ídolo, punha o teu cachecol e saboreava um cachorro quente. E uma cerveja também. Tu passavas a ser insultado por mim e eu passava a insultar-te. Do princípio ao fim. Tu entravas em campo sob um tremendo coro de assobios e eu era um dos muitos que te assobiava. Com todas as minhas forças. Tu sentias a responsabilidade de ter que dar o teu melhor e eu a obrigação moral de te massacrar caso não o fizesses. Mesmo que o tentasses. E se de repente tu tivesses que decidir uma coisa que não viste, que não conseguiste ver ou que viste mas que te deixou muitas dúvidas? E eu tivesse que te relembrar como tenho grande afinidade à tua mãe, à tua irmã, à tua mulher e à tua filha? E se repente te visses rodeado de gente que entrou por todos os lados sem que tu o pudesses evitar e eu fosse um dos que saltei, pulei, entrei e te cerquei também? E se de repente percebesses que erraste? Que não estiveste bem? Que não foste feliz? Que não correu como querias? E eu fosse aquele que te relembrasse isso todos os dias, todos os meses, todas as épocas… toda a vida? Para que a tua autoestima vacilasse ao ponto de quase duvidares da tua competência e qualidade. E se de repente tentasses ser pedagógico num jogo de miúdos e quisesses ensinar um jovem a fazer um lançamento lateral corretamente… e eu te dissesse que o teu trabalho era arbitrar e calar, porque o menino já tinha quem o ensinasse a fazer isso? E se de repente, nesse jogo, tu apenas aplicasses e cumprisses a lei e eu te dissesse que a tua obrigação era também a de ensinar o pequenito e não apenas a de puni-lo? E se de repente desses uma entrevista procurando abrir com transparência as portas àquilo que fazes e eu te dissesse para arbitrares mais e melhor e falares menos? E se de repente escolhesses não dar uma entrevista para não seres mal interpretado e indiscreto e eu te dissesse que devias falar mais porque vives num mundo corporativista, de silêncios cúmplices, onde sempre impera a lei da rolha? E se de repente estivesses a passear com a tua família num domingo soalheiro e fosses incomodado, importunado, ofendido e ameaçado e eu fosse aquele que te incomodasse, importunasse, ofendesse e ameaçasse? E se de repente quisesses ser honesto e assumir publicamente a tua cor clubística e eu te dissesse que já sabia, porque nunca me tinhas enganado? E se de repente optasses por nunca o fazer para protegeres a tua idoneidade e evitares te colocar no centro da polémica e eu te dissesse que quem não deve não teme e devias ter vergonha de não assumires as coisas frontalmente, como os homens fazem?
E se de repente. E se de repente. E se de repente…
Acorda. Estava a brincar.
Continuas a ser tu. Eu continuo a ser eu.”

Este texto emocionou-me. De tal forma que me levou imediatamente a escrever outro ao mesmo tempo que limpo a lágrima que me escorre do canto do olho. E, tal como o lampião o fez, vou partilhá-lo:

E se de repente eu decidisse ser árbitro e tu adepto? Tu serias eu e eu seria tu. Tu passarias a gastar rios de dinheiro em algo que te apaixona e eu passaria a recebê-lo por 90 min de trabalho. Tu passarias a viajar centenas ou milhares de Km para ir ver um jogo, descontando esse tempo aos teus amigos e à tua família e eu passaria a poder passar os fins-de-semana com os meus para apenas perder 2 horas do mesmo para apitar durante 90 min. Eu passava a ser insultado por palavras feias ditas no calor de um jogo e tu passavas a ser insultado na tua inteligência por pensares que as coisas se resolveriam apenas no campo. A minha mãe seria insultada gratuitamente durante 90 min, a tua chorava durante uma semana por ver o seu filho frustrado, irritado e infeliz por minha causa. Tu passarias uma semana a ser gozado no teu trabalho, apelidado de calimero e de chorão e eu passaria a escrever piadas contra o teu clube no Facebook. E se eu assumisse o meu clube? Tu terias um acesso de raiva por eu apitar um clube que é meu rival e eu passaria a ser considerado um ser humano íntegro por assumir as minhas cores. E se o Apito Dourado tivesse tido consequências? Eu passaria a caminhar na rua olhando para trás e tu sentirias que, finalmente, existe justiça no futebol. Eu entraria em campo com medo de errar e tu entrarias no estádio sabendo que eu teria esse medo. Ou consciência. Assim, tu entras no estádio sabendo que eu te vou prejudicar e eu entro no campo sabendo que estou à vontade para o fazer. Tu entrarias no estádio sabendo que eu posso expulsar um jogador teu mas que também posso expulsar um jogador teu adversário e eu entraria em campo sabendo que tinha de aplicar os cartões sem olhar para a cor da camisola. E se tu ganhasses o que eu ganho e eu ganhasse o que tu ganhas? Eu passaria a receber mais de 1000€ por 90 min de trabalho e tu terias que te contentar com o ordenado mínimo por 30 dias de trabalho. Eu poderia acumular part-times e vencimentos sem prejuízo do meu descanso e tempo familiar e tu chegarias a casa rebentado e ias para cama sem jantar e com a tua mulher e filhos já a dormir. E serias despedido ao primeiro erro enquanto eu poderia errar livremente sabendo de antemão que seria nomeado para o fim-de-semana seguinte. Eu teria um Presidente da Comissão de Arbitragem, um Sindicato e uma APAF a protegerem-me constantemente e tu ver-te-ias abandonado e sem apoios de espécie alguma. Eu poderia fazer greve quando ouvisse algo que não me agradasse e tu serias despedido por faltar ao trabalho.

Se eu fosse árbitro? E se tu fosses adepto de um clube constantemente expoliado por ti e pelos teus pares? Não queiras trocar de sapatos. A vida seria bem mais complicada para ti. Sabes lá tu a dor que causas! Portanto, acorda. Não, não estou a brincar. Acorda mesmo. E começa a trabalhar com isenção (difícil, eu sei) em vez de dissertar de forma ridícula sobre uma das melhores profissões do Mundo. Quem não gostaria de errar indefinidamente, continuar a ter emprego, receber cerca de 5.000€ mensais, tudo isto em troca de uns insultos durante 90 min? Troco já contigo. Eu e mais de metade do país.
Vá, não entres em pânico. Estava a brincar. Infelizmente tu vais continuar a ser tu e felizmente eu vou continuar a ser eu.

 

* todas as sextas, directamente de Angola, Sá abandona o seu lugar cativo à mesa da Tasca e toma conta da cozinha!

 

jantar fabio