Se pertences à minha geração ou a gerações próximas, sabes bem o quão difícil foi chegar até aqui. Falo-te de Sportinguismo, obviamente, e já nem vou entrar na distinção de quem teve quem lhe embalasse o sentimento ou fez a escolha porque tinha mesmo que ser. A verdade é que não tenho a mais pequena memória do título conquistado em 1980 e da dobradinha de 1982 restam-me flashes das pessoas a darem-me parabéns pelo facto do meu clube ter sido campeão e o desejo, próprio de um puto de cinco anos, de conhecer o Meszaros, o Jordão e o Manuel Fernandes.
Depois veio o deserto, intercalado por aquela conquista da Taça, em 95, até chegarmos a Maio de 2000 e o país de pintar de verde e branco numa festa a que nem muitos rivais resistiram. Novo campeonato, dois anos volvidos, como que assinalando a entrada na idade adulta e nova travessia do deserto, minimizada por três Taças de Portugal.

Quando olho para trás, sinto que a travessia do deserto mais longa, mesmo sendo a mais difícil, foi vivida de forma mais feliz. As expectativas constantemente defraudadas, matéria mais do que suficiente para amigos e colegas de escola de cores diferentes nos infernizarem as manhãs, alimentavam de forma estranha a colagem da camisola verde e branca à pele. Gostava dos jogadores todos, por mais inaptos que fosse para a prática do futebol e, em discussões, defendia-os como sendo os melhores do mundo. Aliás,  sentimento podia resumir-se a isso: tudo o que era do Sporting era a melhor coisa do mundo. Um gajo sofria em silêncio, mas a cada novo desaire encontrava forma de passar à realidade a máxima “o que não me mata torna-me mais forte”, nem que fosse dando um estampilho na tromba do colega que te azedava às oito da manhã depois de teres chegado a casa demasiado tarde e eliminado pelo Grasshopers, do Sutter.

De 2002 até hoje, esse sentimento tem mudado numa larga franja de adeptos leoninos. É verdade que muita coisa se alterou, desde logo a forma como o clube nos foi sendo apresentado, cada vez mais, como uma empresa. Uma empresa onde, aos poucos, nos foram tiradas as modalidades e as tardes passadas no velhinho Alvalade, que primeiro ficou sem Nave e depois ficou sem jogos ao sol para fazer a vontade ao capitalismo e aos tecnocratas para quem a emoção do desporto funciona como uma slot machine. A disposição para defender os “pernetas” que nos colocavam na equipa era cada vez menor, os motivos para questionar a vida do clube eram cada vez maiores. Sim, és capaz de ter razão se me disseres “mas isso foste tu a cresceres e a passares a comportar-te como um adulto”, mas permite-me contar-te um segredo que se ainda for segredo para ti é porque tens estado muito desatento ao tanto que já te escrevi: quando isto corre mesmo mal, é ao puto que fez a maior travessia do deserto que vou buscar amparo.

E é esse puto que aqui escreve hoje. Um  puto desencantado não com o Sporting, mas com o Sportinguistas. Um puto que cresceu sem fazer a mínima ideia do que é um telemóvel, muito menos redes sociais, e, hoje, vê ambos serem utilizados massivamente para ajudar a atacar o clube de que sempre gostou. Não, não é por adversários, é por quem se diz Sportinguista (explica lá isso a um puto, se fores capaz). Um puto que cresceu com dois canais de televisão, onde até havia a distinta lata de te oferecerem um programa intitulado “agora escolha” e onde uma transmissão futebolística de um jogo do Sporting era uma festa e que, hoje, esmagado por centenas de canais por cabo e por streamings virtuais, vê tantos e tantos adeptos do seu clube tornarem rotina não assistir aos jogos do Sporting. Depois, quando assistem, os aplausos transformam-se em críticas fáceis e em assobios que parecem ter sido ensaiados ao espelho, principalmente os que são dirigidos aos jogadores formados em nossa própria casa.

Tudo isto faz-me enorme confusão. Angustia-me. Revolta-me. Esta incapacidade de sermos unidos é a maior arma ao serviço de todos aqueles que nos tentam derrubar. Este fazer eco de todas as encomendas que são veiculadas pela comunicação social é o maior veneno que podemos injectar em nós mesmos. Quantas e quantas vezes, dou por mim à procura de uma explicação para isto. E não encontro. Sinceramente. Que uma matilha de hienas, habituadas a sugar o sangue do Leão, continue a tentar, por todas e mais algumas formas, recuperar o domínio que perdeu e que quase nos matou enquanto clube, eu ainda entendo. Agora, não entendo e não posso tolerar que tantos e tantos adeptos não sejam capazes de perceber o ponto em que nos encontramos: estamos sob fogo cruzado. Estamos num momento da nossa história em que podemos ser alavanca da viragem ou fazer peso do lado de todos os que desejam que continuemos a ser um clube engraçado em relação ao qual até fica bem dizer “o Sporting forte faz falta ao futebol português”. Hipocrisia.

E é com essa hipocrisia que não podemos ser coniventes, muito menos num momento da nossa história em que abrimos tantas frentes de batalha: comunicação social, empresários, fundos, arbitragem. Achas que é demasiado? Então imagina o quão mais complicado se torna se quem devia cerrar fileiras de verde e branco vestido dá uns passos atrás e se assume como uma ameaça à retaguarda, obrigando o exército leonino a dispersar atenções e a formar um círculo! Sim, é isso que ajudas a fazer quando fazes ecos dos Cervis, quando falas do Carrillo com base em papa mastigada que te dão, quando assobias os nossos jogadores da formação, quando finges não ver que termos contratado Jorge Jesus deixou a nu a máquina de propaganda, quando pareces desejar que não consigamos fazer valer os nossos pontos de vista em relação ao fundos e em relação à introdução dos meios tecnológicos na arbitragem, quando te revelas um palerma e tens a distinta lata de questionar o dinheiro que investimos na equipa só porque se orquestra uma campanha comunicacional nesse sentido, quando levaste uma época inteira a alimentar a separação entre presidente e treinador e já te preparas para dar voz às mentiras atiradas à opinião pública que agora até já chegam do outro lado do oceano ou de um professor a residir no norte de África. Estás a ajudar a cercar-nos!

Devias ter vergonha. Mesmo. Devias ter vergonha de não perceber que os teus pequenos ódios pessoais e a tua incapacidade de gerires agruras da tua vida privada te transformam numa arma ao serviço de quem tem como objectivos diminuir, achincalhar, atacar, acabar com o clube que dizes amar. Devias ter vergonha de apunhalar pelas costas o catraio ou a catraia que já foste e que te ensinou algo que agora guardas na gaveta das meias velhas: se fosse para ganhar sempre, se fosse para só apoiar nas vitórias e se fosse para utilizar os mais sórdidos meios para atingi-las, tu não eras do Sporting. Ser do Sporting dá muito trabalho. Querer ser diferente e assumir uma luta desarmada contra os poderes instituídos, dá ainda mais. Não sei se a ganharemos, mas sei que sinto que vale a pena travá-la por mais dolorosa e espinhosa que possa ser. Aliás, se pertences à minha geração ou a gerações próximas, sabes bem o quão difícil foi chegar até aqui. E se aqui chegámos capazes de manter acesa a tocha do Sportinguismo, foi porque depois de cada derrota e de cada pancada o que sobrou foi a vontade de voltar a colocar o Leão Rampante sobre o coração. Foi porque soubemos manter vivo algo que começou quando as nossas mãos ainda mal conseguiam agarrar uma bola. Nunca te esqueças disso. E, tal como ontem, hoje e cada vez mais, orgulha-te de ser do Sporting!

 

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