Olá, Adrien.
Isto era capaz de ter outra pinta se fosse escrito em papel, se eu fosse uns 30 anos mais novo e se te entregasse estas palavras enquanto tu te dirigias à porta 10-A, regressando do treino no campo anexo a Alvalade. Mas acredita que o sentimento com que o faço é o mesmo, até porque o que me liga ao Sporting não se alterou com o passar do tempo; apenas saiu reforçado.

Sabes, outro dia dei por mim a recordar esses tempos e a lembrar-me dos craques que tive oportunidade de ver passar e a quem, naquele que era um dos actos mais corajosos do mundo, fui pedir um autógrafo. Eram esse momentos que potenciavam o que se seguia, na rua, nas peladinhas onde todos nós queríamos ser algum jogador. E o primeiro que eu quis ser chamava-se William Douglas. O corte de cabelo era manhoso, mas usava-se tanto no futebol como em alguns membros de bandas rock, algures na transição da década de 80 para a década de 90. Havia o pormenor de jogar com as caneleiras mais pequenas do que alguma vez tinha visto e com as meias o mais para baixo possível, numa espécie de estilo blasé que me roubava a atenção. Ainda guardo a cueca que o Douglas fez ao Madanona, ali, no centro do velhinho Alvalade, e que me fez passar a semana seguinte a querer fazer cuecas a todos os meus amigos, mas não era pelo virtuosismo técnico que eu gostava do Douglas. Para isso teria escolhido ser o Balakov, esse monstro que figura entre os melhores pés esquerdo da história do futebol. O que me fazia querer ser o Douglas e jogar com o 8 era o sentimento de que era ele que unia a equipa. o Tomislav era maluco na baliza, o Luisinho era um central de classe, o Oceano transpirava Sporting, o Balakov fazia o que queria com a bola e depois até apareceria um rapaz chamado Figo, mas o Douglas era o farol, era o elástico, era o gajo que estava lá para correr por ele e pelos outros com aquele ar de falso cansado.

Não sei se a culpa terá sido do Douglas, mas sei que a minha personalidade futebolística se moldou de meias em baixo. Não vais ficar admirado, se te disser que, depois do Douglas, quis usar a camisola do Valckx. Passei de William para Stan, mantive um penteado manhoso e continuei com as meias mais descaídas do que a maioria. Havia o Balakov, havia o Iorda, havia o Cherbakov, havia o Juskowiak e o Figo começava a passar a ferro os laterais. Depois chegaria um monstro chamado Paulo Sousa. E havia o Valckx, gajo que tinha pernas compridas, o que fazia com que os calções parecessem mais curtos do que os dos restantes, mas compensava essa ausência de estilo com inatas qualidades de liderança: personalidade vincada e disponibilidade para se sacrificar em prol da equipa (ainda me lembro do gajo acabar o jogo com o lado direito da face feito em Nestum). O Stan era o farol, era o elástico, era o gajo que estava lá para correr por ele e pelos outros com aquele ar de falso cansado. E tinha um pontapé…

Os craques sucediam-se. Marco Aurélio, Naybet, Amunike. Apareceu um Sá Pinto que apaixonou os adeptos. E um Pedro Barbosa que os dividia na paixão. Mas foi já na viragem de milénio que voltei a querer ser algum jogador do Sporting quando jogava futebol: Duscher. Chegou rotulado de uma das maiores esperanças argentinas e viu-se com a tarefa de ser o motor de uma equipa onde cabiam Schmeichel, André Cruz ou Acosta, só para citar alguns nomes do plantel que haveria de fazer-nos sair à rua para pintar o país de verde e branco. Mas eu queria ser o Duscher, aquele gajo que parecia conseguir estar em todo o lado, o homem invisível que se deixava ver sempre que a equipa precisava, o médio que tão depressa fazia as compensações defensivas como aparecia em zona de atirar à baliza. Havia ali tanta classe mascarada de transpiração que, acredito, muito boa gente nem reparava que o Aldo Pedro (nome parolo, mas pelo menos já usava um elástico com algum estilo a segurar-lhe o cabelo) era o farol, era o elástico, era o gajo que estava lá para correr por ele e pelos outros com aquele ar de falso cansado.

Permite-me saltar no tempo, sem desprimor para nomes como Babb, Rui Jorge, Quaresma, Niculae, João Pinto, Jardel, Rochemback, Liedson, Miguel Veloso, Moutinho, entre outros. Estamos em 2016, eu tenho 38 anos, mas nem por isso deixo de achar piada a ser um jogador do Sporting quando vou jogar à bola. E, actualmente, até seria simples optar por um nome: o Patrício é o sucessor do Damas, o William é o gajo que penteia o bigode e sorri enquanto sai a jogar de uma cabine telefónica cheia de adversários, o João Mário é o gajo que trata tão bem a bola que joga em pantufas e dorme com ela, o Ruiz é reviver pormenores do Balakov, o Slimani é toda uma alma de vontade transformada em golos que nos faz trincar a língua de oito em oito dias.

Depois há um gajo, o 23. Não joga de meias em baixo, mas, pelo menos, não tem um penteado duvidoso. Dou por mim a segui-lo, semana após semana, naquele galgar de metros de relva que me fazem querer correr a seu lado. Raramente sorri, envergando uma máscara de esforço e de concentração próprias de quem sabe a responsabilidade que tem. E mesmo quando festeja os golos, antes de sorrir, fá-lo como se precisasse de rugir antes de voltar a respirar. É o gajo que usa a braçadeira e que sabe que terá, sempre, que ser o último a cair (e raisparta se às vezes não acho que vai desfalecer em pleno relvado). Quando o meio-campo se desmembra, é ele que o liga. Quando as compensações defensivas falham, é ele que aparece a correr, mesmo quando parece que as pernas pesam chumbo. Quando a equipa ataca, é por ele que passa o processo e não se inibe de rematar à baliza sempre que surge oportunidade.

O que me fazia querer ser o Douglas e jogar com o 8 era o sentimento de que era ele que unia a equipa. O que me fazia querer ser o Valckx era a personalidade vincada e disponibilidade para se sacrificar em prol da equipa. O que me fazia querer ser o Duscher era ter a certeza que havia ali tanta classe mascarada de transpiração que, acredito, muito boa gente nem reparava que era o farol, era o elástico, era o gajo que estava lá para correr por ele e pelos outros com aquele ar de falso cansado. E é por tudo isso que, naqueles momentos de puto que fazem com que tanta gente crescida continue a jogar à bola, eu tenho uma resposta pronta para quando me perguntam qual o jogador que quero ser: je suis Adrien.