Não é um tema que me agrade, bem longe disso, mas não vale a pena fugir do mesmo, até porque é cada vez mais relevante e revelador do “mapa” de forças em que se joga muito do que dizem os clubes aos seus adeptos – e sim, estou mesmo a falar na guerra de bastidores que neste momento envolve o Sporting e o Benfica. Fica aqui uma, não tão breve, retrospectiva e enquadramento do que é o espaço desta contenda e os porquês de uma certa sofreguidão leonina em combater (tantas vezes com paus e pedras) um Transformer que demorou décadas a montar.

Genesis
Algures nos anos 90 a SIC, ávida de encontrar novos formatos e sobretudo novas audiências convidaria 3 personagens ligadas ao futebol para discutir a agenda desportiva semanalmente. Ao que me recordo os primeiros “paineleiros” foram o jornalista d´Abola Alfredo Farinha, Pôncio Monteiro e Dias Ferreira (pelo menos este foi o elenco mais estável) nesse programa intitulado os Donos da Bola. Longe estariam os produtores do programa de imaginar que o nome do programa faria todo o sentido, não na altura, mas duas décadas mais tarde.

O crescimento
A estabilidade de audiências levaria a que tanto a SIC mantivesse a rubrica, como outros canais acabassem por recriar o mesmo formato. Tanto RTP, como a TVI escolheriam os seus paineleiros e o seu espaço na programação. Com a passagem de muitos conteúdos (não generalistas) para o Cabo, também os “programas de paineleiros” fariam essa migração, SIC Notícias, RTP Informação (primeiro na RTP2 e agora RTP3) e TVI24 acolheriam os debates de futebol, como qualquer outro tipo de debate. O “inesperado” foi que, ao contrário de todos os outros conteúdos que fizeram a passagem do generalista para o cabo, os paineleiros não só mantiveram as audiências que tinham, como se transformaram nos recordistas de audimetria destes recentes canais. Melhores horários, mais airplay (duplicaria para ficar em 2 horas – o verdadeiro prime time) e melhores regalias para manter as “vedetas paineiras” (chegou-se a falar em 2.000 euros por programa p/ convidado).

Esta expansão de audiências, transformaria o que foi antes um mero “bate-boca” sobre bola num verdadeiro terreno de batalha de argumentação sobretudo na temática arbitragens. Os “Donos da Bola” transformar-se-iam nos “Donos dos Árbitros”, pois foi nestas horas de programação que mais se diluiriam os privilégios de Porto e Benfica como pacificas ocorrências e mais se conteriam os protestos leoninos face aos mesmos. Os clubes rapidamente entenderiam a importância da TV na criação de opinião e não mais olharam para os paineleiros da mesma forma, em alguns casos a escolha dos mesmos passou a ser sujeita a aprovação prévia e não oficial dos clubes. Este facto revela que embora a independência se mantivesse na maioria dos casos, a inocência dos comentários terá ido completamente à vida, os paineleiros são cada vez mais os “jogadores de tv” e os transmissores de “mensagens-chave” da comunicação dos clubes de que são afectos.

A disseminação
Com o império do cabo cada vez mais visível, ter um canal nas grelhas de MEO, NOS e Vodafone significa dinheiro em caixa, muito até. Qualquer meio capaz de o fazer, fê-lo. O desporto, claro, é um conteúdo que garante sempre audiências e CMTV e ABolaTV juntar-se-iam aos canais já citados. E para concorrer com os “mais velhinhos” o que acabaria por dominar a programação em prime-time destes recém-chegados? Adivinharam. Mais paineleiros. Hoje em dia até a resistente SportTv já cedeu e é extremamente fácil fazer zapping à noite e, canal após canal, ouvir as mesmas perguntas e mesmas respostas. Noite após noite o formato é o mesmo e o conteúdo também. Varia o estilo e a subserviência à vontade dos clubes, mas na sua essência…seja qual for o canal escolhido, o que se aprende e apreende é o mesmo…zero. Na verdade a fórmula de sucesso tem muito pouco segredo e dificuldade. Elege-se um pivot que valide tudo e mais um par de botas, só intervindo segundos antes da agressão física. Convidam-se personagens que gravitem à volta dos clubes (ex-dirigentes, ex-jogadores e treinadores em mó de baixo) e voilá…mais um programa que vai contribuir significativamente para o esmiuçar de polémicas e a medição de pilas do costume.

Com a expansão de tantas horas de programação diárias e com zero de trabalho editorial, estes programas recorrem aos jornais e redes sociais para fundar as temáticas de debate. Isto converte-os automaticamente em câmaras de ressonância da agenda dos jornais e completa um “full circle” de comunicação. Se aos jornais interessa ganhar a vida, “trabalhando” para a demografia (maioria de adeptos benfiquistas e divisão do restante espectro pelo Sporting e Porto) os programas de paineleiros vão um passo mais à frente, muitas vezes construindo equilíbrios que se apoiam em convidados pró-benfica e anti-sporting. Cada vez mais se esbate o contraditório e se força a agenda para narrar o velho conto que já conhecemos de ginjeira, a clássica e bafienta “supremacia encarnada” e por oposição a saloíce e incompetência azul e verde. Em muitos casos os painéis, antes repartidos pelas 3 cores, reflectem agora toda uma gama de cores que oscila ente o vermelho vivo e o vermelho baço, dispensando a divergência ou diversidade de opiniões, na capitalização total da audiência benfiquista e o desprezo absoluto pela restante, algo que os jornais sempre se preocuparam em disfarçar (mesmo que jurando a pés juntos que não são autores do crime enquanto seguram uma faca ensanguentada ao lado da vítima que aponta para o mesmo e diz “foi ele”).

A nova Fronteira
A tv de hoje em dia, é sabido, perde diariamente muitos espectadores. Para ser verdade, ela não os perde…não chega é sequer a conquistá-los. As gerações mais jovens desde que é feito o desmame dos cartoons passam literalmente para a Playstation e YouTube, e muitas e muitas horas em redes sociais. Mas se a tradição da família a disputar o canal de tv findou, o gosto pelo futebol mantém-se vivo. E a migração dos conteúdos de tv e jornais está a ser feita também para o facebook, o twitter, o snapchat, e para sites, portais, blogs e canais virtuais. Este novo terreno é mais difícil de manietar, é mais árduo de dobrar a uma “narrativa”, mas há quem tente, oh se há! Os paineleiros são outros…e são chamados agora de “avençados”. Tudo o que é conteúdo tem duas interpretações: ou é uma campanha contra, ou é uma campanha a favor. E há avençados para qualquer dos registos. Convém fazer a ressalva de que o vocábulo “avençado” está a ser mal usado…pressupõe avença, ou seja, pagamento por trabalho efectuado a pedido de uma entidade…não podendo julgar todo o universo de adeptos que produz conteúdo futebolístico, arriscaria dizer que 99% dos que o fazem, não é realmente pago para tal (nem directa nem indirectamente). O que não quer dizer que tenha uma voz independente. A maior parte não perde independência porque é “comprada”, mas sim porque quer, de facto, ajudar o clube e fá-lo sem contrapartidas, perdendo um pouco de isenção…mas de forma voluntária.

Do caos criativo de há uns anos atrás, as redes sociais estão a formatar-se e os criadores de conteúdo também. Em alguns casos, as parcas receitas geradas por publicidade justificam um meio-profissionalismo…mas no essencial a maioria dos criadores de conteúdo gasta o seu tempo-livre nesta actividade e nada vê enriquecer na sua vida sem ser o seu amor pelo clube.
O grande problema destes canais é também a sua grande virtude. Todos poderem dizer, concordar ou censurar qualquer conteúdo…abre espaço e foco a toda e qualquer disparate. Não é difícil ser “visto” numa rede social por milhares de pessoas, o que é mesmo difícil é manter qualidade no conteúdo. Muitos cedem e “dão” ao seu público o que ele quer, dão ao seu clube o que ele quer…e mediante os escrúpulos dos dirigentes (ou próximos destes) apadrinham mentiras, ataques cobardes e orquestram campanhas no sentido de atingir determinados objectivos. Em muitos sentidos, as redes sociais são palco para os maiores ataques, os mais vis e mesquinhos, os mais impunes. Também aqui a “organização” e peso dos números tem sido difícil ao Sporting de contrariar. A rede de meios iniciada por Mr.Bruns contou com uma “distribuição” alargada e privilegiada na internet. Quem pense que tudo era fruto da discussão empírica e casual, que se desengane. O Benfica acordou primeiro para a importância das redes sociais como meio “independente” capaz de disseminar mensagens e criar factos. Hugo Gil é um enteado que já passou a filho…no Sporting os “avençados” ainda são primos distantes. Há quem veja o avençadismo como natural, eu continuo a achar que a via leonina, menos concertada, menos eficiente e menos dogmática é a mais ajustada. Mas isso tem custos e o clube tem-se desdobrado em linhas de comunicação menos formais que são facilmente contrariadas no espaço cibernético. Por exemplo, basta arrebanhar “meia-dúzia” de otários para fazer o facebook retirar um post e algumas “dúzias” mais para retirar uma página de fio a pavio. O benfica fê-lo e aqui nasce mais uma frente de batalha onde um clube nunca poderá fazer face aos indivíduos, a não ser que os controle. Este é todo um novo paradigma e estamos de facto a ver nascer algo de diferente e que receio venha a expor daqui a algum tempo, alguns dos podres mais inenarráveis do futebol e da forma como os clubes são geridos. Acima de tudo é a “próxima fronteira” do que nasceu com os paineleiros de tv e ameaça transformar-se em algo global…a passagem de um confronto de espaço demarcado para algo global, casa a casa, adepto a adepto, IP a IP.

O Futuro
No meio de tudo isto, está o adepto. Ele não sabe, mas está cada vez mais exposto, envolve-se cada vez mais e é, a cada dia que passa, cada vez menos espectador e cada vez mais interveniente. Ele não sabe, mas os clubes mentem cada vez mais, distorcem a realidade cada vez mais e esforçam-se cada vez mais para controlar a opinião. Uma derrota pode ser hoje uma vitória, uma dívida pode ser hoje um activo e um erro é cada vez mais um acerto (que parecendo o contrário) faz parte de um “big plan” cada vez menos perceptível. A todos os que acham que as polémicas são algo que a internet, os jornais ou as tv´s lhe trazem até si…look again…todos nós já fazemos parte de todas as polémicas e questionamos cada vez menos quem as suscita. Questionamos cada vez menos as origens e os porquês dos comportamentos dos nossos clubes. Simplesmente porque somos cada vez mais incapazes de distinguir o certo do errado. Estamos a anos de luz do mero bate-boca entre Farinha e Pôncio, inconsequente e ingénuo. Somos cada vez mais parte do problema sem o conseguir solucionar. Nem sequer “vemos” o problema e ele está todos os dias à nossa frente. Os “Donos da Bola” e o filme Matrix são cada vez mais a mesma coisa. Solução? Não ver, não comprar, não dar likes, não “seguir”…os que forem capazes de saltar fora do barco da avalanche de informação serão os mais abençoados, porque a eles ser-lhes-á dado o reino dos céus de não ter de ler o Farinha, ouvir o Guerra ou fazer like num post a destratar Rui Gomes da Silva.

*às quartas, o Leão de Plástico passa-se da marmita e vira do avesso a cozinha da Tasca