Meteu a mão ao bolso e tirou um papel velho todo enrolado e mostrou-me. Eu desenrolei e estava escrito com a letra dele, em português: “Nada como o primeiro amor”. Sabem a que é que ele se estava a referir? Ao Sporting.

Nasceu em Porto Amélia, agora Pemba, em Moçambique e veio para Portugal com oito anos. Do que é que se lembra da infância em África?
Recordo-me de ser o único branco na escola. de jogar à bola descalço na rua e pouco mais.

Há algum cheiro, som, qualquer coisa que o leve de imediato a Moçambique?
Não, mas há certas imagens de África que me criam uma espécie de borboletas no estômago. Tudo o que tenha a ver com beleza animal, algumas paisagens. Mexe comigo.

Já lá voltou?
Não. Estive para voltar há uns anos, no tempo das cheias. Era fazer um jogo para angariar fundos que acabou por não acontecer. Há dois anos também estive para ir treinar uma equipa moçambicana, o Desportivo de Nampula, mas não aconteceu. E estive para treinar uma equipa do Clube do Chibuto, também acabou por não acontecer. Tem estado adiado. Por algum motivo será.

Veio morar para Santarém.
Sim, para o bairro D.Constança, uma aldeia que pertence à freguesia de Tremês, concelho de Santarém.

A mudança foi um grande choque?
Não. Nunca fui de sentir as mudanças. Só uma vez, já como jogador profissional, é que houve um país onde me custou viver. Em Itália, quando estive no Brescia.

Porquê?
Por ser uma cidade cinzenta. Fui na altura de novembro, por empréstimo. Sempre frio, sempre nevoeiro, as pessoas um pouco frias. Depois do treino, se não estivesse junto do grupo e ouvisse que eles iam almoçar e não dissesse “eu também vou”, quase ninguém convidava. Só os jogadores que também tinham entrado no mercado de inverno, como eu, é que normalmente me convidavam. A restante equipa era fechada. Na altura discriminavam um bocadinho o jogador estrangeiro.

Estava a falar de Santarém.
Sim, jogava na aldeia, com 10 anos, de botins. Só fui federado no meu último ano de iniciado, na Académica de Santarém, em 1983/84. Tinha 14 anos.

Como foi aí parar?
Tínhamos uma equipa em Santarém que se chamava “Os Africanos”, porque era composta por jogadores oriundos de África. Jogávamos no Largo do Seminário, em Santarém. E só jogávamos nos torneios da Direção Geral dos Desportos. Entretanto a maior parte de nós passou para a equipa do Sr. Coimbra, que se chamava “Os Incógnitos”. Ele tinha uma carrinha pão de forma branca e vermelha. No ano seguinte passámos todos – jogadores, treinadores, dirigentes – para a Académica de Santarém. Começámos o campeonato e em 18 jogos marquei 43 golos. A meio do campeonato o Sr. Coimbra contactou o Casa Pia, o Benfica, o Sporting e trouxe-me a treinar a Lisboa. Poderei dizer que não fui um talento descoberto pelo Sporting, porque eu é que me vim dar a conhecer.

Lembra-se do seu primeiro treino no Sporting?
7 de fevereiro de 1984, com a equipa de juvenis treinada pelo Aurelio Pereira. E, no final do treino, ele mandou-me passar no departamento para assinar. Mas eu, como ia ficar essa noite a dormir no centro de estágio porque só tinha o autocarro para Santarém no dia seguinte, passei no departamento para perguntar onde era o centro de estágio e não percebi que era para assinar (risos). Depois foram ver-me a jogar em Benavente. Eu vi-os lá na primeira parte, fiquei nervoso e não joguei quase nada. Na segunda parte eles não estavam e pensei: “não interessa”. Ganhámos 2-0 com golos meus.

Depois começa a ir aos torneios do Sporting.
Sim. É na altura em que vem também o Rui Correia, guarda redes. Assinei no verão pelo Sporting e passei a viver no centro de estágio, que ficava na bancada central do antigo estádio de Alvalade.

Nessa altura torcia por que clube?
Em pequeno o meu desporto favorito era o hóquei em patins. Moçambique é um país com tradição.

Mas praticou?
Nunca. Jogava na rua, tipo hóquei em campo, fazia o stique com os ferros das obras. Nunca joguei, mas tinha uma paixão louca pelo hóquei em Patins. Nessa altura o FC Porto tinha uma equipa de hóquei em patins fabulosa, assim como o Oeiras. Depois comecei a ver o Fernando Gomes a jogar futebol e nessa altura a minha preferência era o FC Porto. Mas ao vir para o Sporting, comecei a viver o Sporting 24 horas. Tornei-me sportinguista.

Quantos anos esteve no centro de estágio dos leões?
Três anos. Dos 15 aos 18 anos.

Foi duro passar a viver no centro de estágio, sem o conforto de casa, e o carinho dos pais e das duas irmãs?
Eu ia a casa de quatro em quatro meses. Tínhamos um departamento de futebol juvenil muito bem estruturado. Passei a estudar na escola secundária do Lumiar. Não custou porque eu fui atrás de um sonho. Tinha dito ou pedido aos meus pais para não me cortarem as pernas já que estava a ter aquela oportunidade; porque eu sabia onde queria chegar. E cheguei.

Nesses primeiros tempos no Sporting quem eram os amigos mais chegados?
Tinha o Sérgio Louro, que era guarda redes dos juniores, os irmãos Castro, do atletismo, o José Carvalho, do salto em comprimento e barreiras, o Ezequiel Canário, do atletismo, Rui Correia, Litos…

Lembra-se da estreia na equipa principal?
Foi num jogo particular da pré-temporada contra o Desp. das Aves. O treinador era o Keith Burkinshaw. Nos juniores eu já treinava com os seniores. Quando era júnior de primeiro ano o treinador era o John Toshack, e às vezes ligavam para o centro de estágio a perguntar: “Há aí algum defesa direito dos juniores?”. Eu ouvia, ia lá abaixo e treinava a defesa direito. Passados uns tempos ligaram outra vez, precisavam de um defesa esquerdo e eu fui. O Toshack vira-se para mim e pergunta: “Mas tu és defesa esquerdo ou direito?”. E eu: “Eu quero é treinar”. Naquela altura ainda por cima estavam no Sporting o Jaime Pacheco, que era um dos meus ídolos, o Sousa, Jordão, Manuel Fernandes. Para poder treinar com os nossos ídolos, treina-se em qualquer sítio.

No percurso que tinha feito até aí jogava em que posição?
Ou era médio esquerdo ou médio direito ou médio centro. Eu fui júnior a defesa direito, meio direito juvenil, defesa esquerdo num torneio do Algarve. Joguei em quase todas as posições. Só fui ponta de lança no ano em que o Fernando Gomes abandonou a carreira, em 1991/92. Nessa época passo a ser o ponta de lança do Sporting e faço 25 golos no campeonato.

Mas até chegar aí…
No 2º ano de júnior chegou uma fase em que só treinava com os seniores e jogava pelos juniores. Estive para ser convocado ainda como júnior para um jogo da meia final da Taça de Portugal, nas Antas contra o FC Porto, mas acabei por não ir. No ano seguinte, como sénior de 1º ano, faço a pré-temporada toda como titular, começo os primeiros jogos do campeonato como titular, jogamos com o Tirol para a Taça das Taças – jogava lá o Ivkovic [mais tarde guarda-redes do Sporting] que era o guarda-redes do Tirol – e ganhámos 4-0. No jogo de lá, como já tinha ultrapassado os seis jogos, arranjaram um problema qualquer com o meu passaporte, e eu depois nunca mais fui convocado.

Explique lá isso melhor.
Nesse tempo tínhamos um contrato que funcionava assim: havia o oficial em que recebia 30 contos, e o paralelo em que recebia 50 contos. Se jogava mais de seis jogos, dobrava esses 50 contos, ou seja passava a ganhar 100. Não eram 100, porque havia os descontos; eram uns 75 contos. Passei os seis jogos e quando faltava dois jogos para triplicar, nunca mais fui convocado. Isto em dezembro. Fui só convocado nos últimos dois para o campeonato, e mesmo assim só entrei no último.

Já tinha empresário?
Não. Assinei por quatro épocas, sem empresário e sem consultar os meus pais.

O que fez com esse primeiro dinheiro? Continuou a viver no centro de estágio?
Não. Depois eu continuei a almoçar no centro de estágio mas passei a viver num apartamento, com o Rui Correia, que era pago pelo Sporting. Por isso, esse ordenado praticamente todo foi para comprar o meu primeiro carro, um Seat Malaga. O meu pai fez o negócio em Santarém e eu pagava as prestações.

Entrou na equipa principal em 1987/88 mas acaba por ser emprestado ao V. Setúbal, porquê?
Começamos a pré-temporada com o Pedro Rocha, treinador uruguaio, e é-me dito que vou ficar, que vou melhorar a minha situação salarial e fazer mais jogos. E logo na pré-temporada começo a ficar de fora. Na altura, o adjunto era o Fernando Peres e fui ter com ele. Ele disse-me para não me preocupar, mas a situação manteve-se. Fui falar então com o presidente, o Jorge Gonçalves, e disse-lhe que não treinava mais, que queria ser emprestado. Ele falou-me da possibilidade da Académica de Viseu e do Portimonense, e eu disse-lhe que não, que gostava de ir para um clube perto de Lisboa para eles poderem continuar a observar a minha evolução. Assim que o Manuel Fernandes, com quem eu tinha treinado, soube, veio a Lisboa convencer-me para ir para o V. Setúbal.

E foi. Mas só uma época.
Assinei dois anos por empréstimo, só que o Sporting arranjou uma cláusula em que se o Sporting quisesse eu tinha de regressar ao final de um ano. O Setúbal não teve conhecimento dessa cláusula.

Como não teve conhecimento, não assinou o contrato?
Não. Essa cláusula foi metida no contrato de rescisão que foi para a federação.

O V. Setúbal não reclamou?
Não, porque já era muito bom o V. Setúbal ter um jogador emprestado sem estar a comprar, apesar de ser o V. Setúbal que me pagava o ordenado. Entretanto em 24/25 jogos, como ala direito, fiz 11 golos, e o Sporting passa a ter o treinador Manuel José e quiseram o meu regresso.

Regressa em que condições?
Pelo valor do meu contrato antigo, que era menos de metade do que ganhava no V. Setúbal. Porque como fui emprestado dois anos, mas regressei ao final de um ano, ainda estava em vigor o contrato antigo. Como também não me pagavam a renda de casa fiquei a morar em Setúbal e ia e vinha todos os dias.

Quanto ganhava nessa altura?
30 contos oficial e 120 de paralelo. E no V. Setúbal ganhava 400 contos. Era 360 mas ao fim de 10 jogos passei a ganhar 400. Entretanto, comecei a jogar bem no Sporting e o Sousa Cintra começou a dizer que tínhamos de rever o contrato. Nessa altura disse-lhe: “Agora vamos deixar o contrato chegar até ao fim e depois falamos”.

Já tinha empresário?
Não. Até aos 27 anos não tive empresário. Fui sempre eu a resolver as coisas e sempre resolvi tudo à hora de almoço ou em duas/três horas de reunião.

Quando renova com o Sporting?
Em 1990. E depois fiz outro em 1992/93 salvo erro, por mais três anos.

Mas, entretanto, é emprestado ao Brescia.
Com a saída de Bobby Robson chega o Carlos Queiroz ao Sporting e eu comecei a ser afastado da equipa. Há interesse do Reggiana, através do Futre, que falou com o Sporting. Tínhamos tudo tratado e de repente fui parar ao Brescia.

Como?
Porque entretanto apareceu o José Veiga e veio com a conversa que era melhor eu ir para o Brescia, por isto e aquilo. Aceitei. Regressei no final da época. Nos últimos jogos estava meio lesionado, porque apanhei uma joelhada nos testículos, na veia varicocelo. Tive de ser operado e já não voltei a jogar. Fui muito bem tratado pela direção do clube e fiquei até final da época. Mas depois regresso.

Quando regressa de Itália para o Sporting o treinador ainda era o Queiroz
Sim.

E?
O mesmo processo. Pré-temporada, em cinco jogos marquei nove golos. Melhor marcador das equipas portuguesas da pré-temporada. Começámos com a Supertaça contra o FC Porto em Alvalde, na altura ainda se jogava a duas mãos; fui titular e capitão de equipa. Oito dias depois tínhamos dupla jornada com o FC Porto, para o campeonato e 2ª mão da Supertaça, e eu fui para a bancada. De titular e capitão de equipa para a bancada.

O que aconteceu?
Não sei. O Sporting na altura comprou o ponta de lança Ouattara e outro, que nem me recordo o nome. O Ouattara marcou um golo para o campeonato e foi o único golo que marcou pelo Sporting e eu, que fui titular, capitão e melhor marcador do campeonato do ano anterior, passei a ir para a bancada.

Sem nenhum motivo? 
Sem motivos.

Como era a sua relação com o Queiroz?
Era boa. Trabalhámos na seleção desde 1985, desde a primeira vez que Portugal foi ao campeonato da Europa de sub-15. Fui quase sempre jogador dele na seleção.

Não percebeu o que é que se estava a passar?
Não. Também nunca perguntei. Não sou daqueles jogador de bater na porta do treinador e perguntar por que não jogo. Ou de dizer coisas como: “É preciso falar com o presidente para jogar?”. Ou: “Sou capitão, quero jogar”. Não, nunca aconteceu. Tanto que se houvesse algum problema entre nós, eu estaria seguramente com um processo disciplinar e nunca o tive. Mas também nunca deixei de treinar a sério. Os meus colegas às vezes diziam-me: “Mas porque treinas dessa forma se não vais ser convocado?”. Eu respondia: “Quando ele me convocar e puser a jogar eu vou estar preparado. Se calhar o que ele está à espera é que eu não treine ou não me aplique”.

 

cadete2

 

Nunca percebeu porque deixou de ser convocado? É estranho.
Às vezes é fácil perceber. Quando começa a haver influências de empresários é fácil perceber-se porque é que não se joga. E hoje em dia cada vez mais. O peso de ter o empresário A ou B ou C tem influência naqueles jogadores que jogam mais ou menos. É complicado um treinador ou vocês jornalistas fazerem uma análise de um jogador, de quanto ele rende, porque nós temos sempre jogadores preferidos. Se for analisar as perdas de bola, os passes longos e curtos do meu jogador preferido e comparar com outro, se calhar até fez menos 50% do que o outro, mas como tenho uma certa tendência para gostar daquele, eu vou dizer que é melhor jogador. E vou estar sempre a ver as coisas boas que ele faz e, do outro, só reparo e falo das más.

Acha que aconteceu isso consigo?
Aconteceu.

Só viam as coisas más?
A questão não é só verem as coisas más. A questão é que por vezes há treinadores que não se sentem seguros das competências que têm. É como em tudo. Um líder é uma coisa, um chefe é outra. E há alguns que querem ser líderes, mas são chefes. E quando assim é, às vezes até têm receio da sombra, desconfiam de tudo e mais alguma coisa. Quando um treinador começa a desconfiar dos jogadores, perde uma equipa; e ao perder uma equipa vai ter de começar a arranjar bodes expiatórios. Não é à toa. Se formos analisar, há jornalistas que veem o que está a acontecer e escrevem ou falam e há outros que não. Naquela altura de 1993/94, em que após o Casino de Salzburgo o Sporting despede o Bobby Robson, e passadas poucas horas entra o Queiroz, se formos ver esse processo todo e essa equipa que o Robson tinha… Eram cinco campeões do mundo de Lisboa 1991 e dois ou três de Riade. Paulo Sousa e Filipe, de Riade, depois Capucho, Nelson, Paulo Torres e Poejo se não me engano. O Sporting tinha sete campeões do mundo, eu, como capitão, era dos jogadores mais velhos, tinha 25 anos, o que quer dizer que a nossa média de idades andava à volta dos 23/24 anos. Ou seja, era uma equipa seguramente para ganhar cinco ou seis campeonatos seguidos. E, em dois anos, desses 27 jogadores, só dois é que se encontravam no plantel.

Os outros sairam todos.
Os outros sairam todos. Porque é que no espaço de dois anos saem Paulo Sousa, Pacheco, Balakov, Figo, Peixe, Capucho, Filipe? Foram campeões do mundo com ele. E depois, Capucho e Filipe são emprestados ao V. Guimarães, em troca com o Pedro Martins e Pedro Barbosa. Balakov saiu quase ao preço de saldo para o Estugarda. O Figo sai para o Barcelona porque não souberam renovar antes com ele para sair por outro valor. O Peixe sai para o Sevilha. E a mim queriam emprestar-me para todo o lado. Para o V. Guimarães, Farense, Marítimo. Houve uma fase em que o presidente do Marítimo ligava-me todos os dias a contar tudo e mais alguma coisa, para tentar convencer-me. Houve uma altura em que disseram que eu queria ir para o V. Guimarães. Quer dizer, eu sou capitão da equipa há quatro anos, nasci no Sporting, sou o melhor marcador do campeonato, sou titular da seleção e quero trocar o Sporting pelo V. Guimarães? Se fosse ao contrário…

Sentiu-se injustiçado. O que fez?
Sim, mas continuei com a mesma atitude e fiquei no Sporting mais uma época e meia, rescindi em novembro de 1996.

Porque rescindiu? 
Um jogador que durante quase dois anos está a ser posto de lado e está a ser oferecido ao Farense, Marítimo, V. Guimarães com todo o respeito pelas instituições, é normal que…como diz o ditado “água mole em pedra dura tanto bate até que fura”. É normal que em termos emocionais não nos sintamos em condições para continuar. E foi isso que aconteceu.

Como foi para o Celtic?
Estive seis meses a correr sozinho porque não tinha clube para treinar e entretanto apareceu o Paulo Barbosa, como empresário, com a proposta para ir para o Celtic. Depois a federação não quis libertar o meu certificado internacional. Assino, depois já não é válido, depois vai, e vem, entretanto criou-se uma confusão tão grande que acabei por ser eu a abdicar de verbas que ia receber por assinar contrato para pagar a indemnização ao Sporting. E só joguei 13 meses na Escócia porque quando assinámos contrato ficou acordado verbalmente que o presidente me devolvia o dinheiro da indemnização. Ainda pedi para pôr por escrito no contrato, mas ele disse que não, que me dava a palavra dele. Chegou ao final do ano e disse que não se lembrava e que nunca me tinha dito isso. Então, vim embora.

Isso no final da segunda época?
Eu cheguei faltavam seis jogos para acabar o campeonato. O meu primeiro jogo foi a 1 de abril de 1996. E um jogador que não joga e não treina há seis meses, seguramente não vai fazer seis jogos a titular. Era o campeonato a acabar, era o Europeu de 1996, e toda a gente dizia que eu não ia ser convocado – eu sempre acreditei. Então, nesses seis jogos, joguei 245 minutos e marquei cinco golos. E fui chamado para o Euro 1996. Joguei pouco, mas fui chamado. No ano seguinte, faço 41 jogos pelo Celtic e marco 33 golos sem penáltis; fui o melhor marcador do Reino Unido, à frente do Shearer.

E entra para a história …
Há uma coisa que nunca ninguém vai apagar: sou o primeiro jogador português que foi o melhor marcador num campeando estrangeiro. Podem passar-se milhares e milhares de anos mas, na história, quando forem à procura de quem foi primeiro português a ser o melhor marcador no estrangeiro: Jorge Cadete. Não há hipótese nenhuma de isso ser alterado. Isso não me podem tirar.

Foi para a Escócia sozinho?
Sim. Eu já era casado na altura – tinha casado dois anos depois do primeiro divórcio -, com a Anabela, jogadora de basquetebol do Algés e Dafundo. Quando fui era só para assinar seis meses, de março até final da época, para conseguir ir ao Europeu, e depois seria um jogador livre e poderia regressar ao Sporting, que era o que estava previsto, até porque no final do campeonato da europa eu tivera reuniões com dirigentes do Sporting. Quando me disseram que tínhamos de fazer nova reunião para discutir verbas eu disse: “Há lá um contrato meu antigo, o último, pode ser esse”. Na altura, o Simoes de Almeida até ficou admirado por eu dizer que podiam ser aqueles valores do contrato antigo. Depois acho que houve reuniões com o treinador belga Waseige. Quando falaram no meu nome, o Norton de Matos já lhe tinha metido tanta coisa na cabeça, que eu era um jogador indisciplinado, incorreto, que criava mau ambiente. Era isso tudo diziam, mas eu não tinha nem cartões vermelhos no campo, nem processos disciplinares no clube. Depois, o Sporting foi fazer um jogo amigável a Glasgow, com o Celtic, que estava no acordo da minha saída. Eu fiz um grande golo de cabeça, dei o segundo a marcar e quando fui substituído, como era normal no estádio do Celtic, o público estava todo de pé a cantar o meu nome. Lembro-me de que quando passei ao pé do banco o treinador perguntou ao Norton de Matos se eu era aquele jogador que já estava acabado.

Essa imagem que diz terem construído de si, não correspondia em nada à verdade?
Não. É normal quando há interesses. Quando se é diretor desportivo de um clube e também há interesses em termos de contratação de jogadores…é normal que jogadores que estavam antes já não interessavam ao clube.

O seu empresário Paulo Barbosa não fazia parte daquele meio que tinha interesses no Sporting?
Acho que não.

Apesar de ter ficado apenas 13 meses na Escócia, foram os seus anos de ouro.
Foram 47 jogos, 38 golos. Posso dizer que passaram 22 anos e as pessoas continuam a tratar-me de uma forma incrível. Estou a reativar a página da minha academia de futebol e houve um adepto escocês que partilhou na página dele do Facebook e em dois dias teve mais 1500 seguidores. Eles falam comigo no Twitter, Instagram, no FB como se eu estivesse lá estado 10 anos. Têm uma consideração por mim fora de série. Além de ter sido o primeiro português a ser o melhor marcador no estrangeiro, eu continuo a ser, nos últimos 22 anos, o jogador número um em golos na primeira época completa ao serviço do Celtic.

O Dembelé esteve para bater esse recorde a época passada. 
Sim. Ele tinha 32 golos e eu 33 e faltavam 12 jogos para o final da época quando o “The Sun” me ligou para fazer uma entrevista. Ficaram admirados de eu dizer que gostaria que ele batesse o meu recorde e que, como faltavam 12 jogos, provavelmente ele iria chegar aos 45 golos. Ele não conseguiu bater o recorde, porque lesionou-se no jogo a seguir e quando recuperou nunca mais conseguiu marcar golos. O recorde continua a ser meu passados 22 anos. Esteve lá o Pierre van Hooijdonk, e marcou 32 golos na primeira época completa que fez. O Henrik Larsson fez apenas 18 golos na primeira época completa dele, em mais de 40 jogos. Eu em 41 fiz 33 golos sem penalidades e estive lesionado durante sete jogos, em que não joguei, e quando entrei nos sete jogos a seguir não consegui marcar. Isto foi em dezembro. Em janeiro marquei 12 golos em quatro jogos. Foi numa altura em que apareceu o Leeds United a ver o Pierre van Hooijdonk, mas depois de verem dois jogos queriam era negociar a minha saída. Chegaram ao ponto de oferecerem ao Celtic nove milhões de libras, em 1996, e eles não quiseram vender. Depois acabaram por gastar esse valor para me substituir, quando bastava terem-me devolvido as 400 mil libras que tirei do meu contrato para pagar a indemnização ao Sporting.

Como se dá a sua saída para o Celta de Vigo?
Na sequência dessa situação em que fico em casa e digo que não estou bem psicologicamente para regressar ao Celtic, porque o presidente não cumpriu com a palavra dele.

Gostou da experiência em Espanha?
Gostei. Ao contrário do que se dizia em Portugal, de que as equipas espanholas trabalhavam muito, foi dos países em que menos me custou treinar. Jogava-se ao domingo, recuperava-se à segunda-feira e só se voltava a treinar à quarta-feira à tarde. E à sexta-feira eram treinos voluntários, quem queria treinava. E o treinar era assim: os defesas iam às dez e meia fazer banhos e massagens ou futvólei e os avançados ao meio dia e meia. Se não quiséssemos podíamos ficar em casa. No sábado, um treino ligeiro e depois no domingo é que se corre ao máximo. Por isso praticante quase todas as semanas dava para vir passar dois dias a Portugal, uma vez que a minha mulher estava cá.

Não fica em Espanha mais tempo porquê?
Entretanto, o Celta contrata o Penev, eu tinha mais um ano e meio de contrato, mas na altura o Benfica interessou-se também na minha contratação. O Sporting não se interessou. Eu tinha na altura 30 anos e era uma possibilidade de o Celta de Vigo recuperar algum dinheiro que investiu em mim. Eles compraram-me ao Celtic por três milhões de dólares e vender ao Benfica era uma oportunidade. Eu queria regressar a Portugal.

Porquê?
Porque aos 30/32 anos, depois de estar tanto tempo no estrangeiro, achava que era uma boa altura para voltar ao meu país. Nunca tive grande espírito de emigrante.

Veio para o Benfica, mas continuou a ser conotado como jogador do Sporting.
É normal. Era jogador do Benfica e quando ia na rua as pessoas diziam: “Olha vai ali o Cadete do Sporting”.

Como sportinguista, custou-lhe jogar pelo Benfica?
Não porque eu sou um excelente profissional. Existem aqueles que não conseguem controlar os sentimentos clubísticos e há os que conseguem pôr acima de tudo a parte profissional, é o meu caso.

No Benfica, ainda é emprestado ao Bradford City.
Sim, cheguei em Dezembro, em janeiro o Bradford andava à procura de um ponta de lança e eu fui emprestado para lá. Quando regressei, no final da época, fui englobado no negócio do Miguel e fui para o Estrela da Amadora. Em 2001, fui operado à perna e praticamente já não joguei mais.

Foi operado porquê?
Apanhei uma pancada num jogo, fiz um estiramento depois ficou uma fibrose e tive de ser operado.

 

cadetecherba

 

Dá aulas no colégio islâmico de Palmela que passou a chamar-se International School of Palmela. 
Sim, desde o ano passado, dou lá aulas de futebol. Eles deram-me uma oportunidade de um ano, e ao fim de um mês estavam a elogiar o meu trabalho. Neste momento, de um ano para o outro, investiram em colocar um relvado no polidesportivo, estão a gastar numa equipa de infantis no campeonato de futebol 7, no distrital de Setúbal. São miúdos que não têm grandes noções do que é futebol federado porque estão a começar agora e vão jogar contra miúdos que já treinam desde os seis anos. Isso é uma grande valorização e reconhecimento da minha competência, não só do meu nome e daquilo que fui.

Quando criou a sua Academia?
Eu fiz a Jorge Cadete Academia de futebol em 2003. Ao contrário da maior parte dos jogadores só decidi fazê-la quando deixei de jogar, porque sou eu que dou os treinos. Em 2005 tinha um protocolo com um clube, o Santoantonense, para eles entrarem com a equipa federada, eu tinha os jogadores e o treinador. Mas entretanto eles não tinham verba e, no espaço de um mês, criei o Cadete Sport Academia que é uma associação desportiva sem fins lucrativos. No primeiro ano tive escolinhas e infantis, em que eu fazia tudo, marcava o campo, dava os treinos, ia buscar os miúdos à escola para os treinos, lavava os equipamentos, fazia tudo. No ano seguinte tive iniciados e infantis, depois infantis e juvenis, depois também juniores. Eu treinava juvenis e juniores e ao sábado estava com uma equipa e no domingo com a outra. Até que cheguei a um ponto em que disse: “Preciso de descansar”. Nessa altura, apoios, zero. Câmaras Municipais, zero. Tudo investimento meu. Claro que uma escola de futebol na margem sul… era complicado. Hoje em dia posso dizer que a maior parte das escolas de futebol que têm nomes de jogadores, não são os jogadores que dão os treinos. E acho que isso é um erro muito grande.

Porquê?
Porque é que hei-de guardar para mim tudo aquilo que aprendi? De que que serve tudo que vivi e todas as experiências que tive se não as vou passar a mais ninguém?

É de uma geração em que se falava muito das saídas noturnas dos jogadores.
Eu não saía.

Não saia?
Eu só saía depois das competições europeias e quando passávamos a eliminatória. Mas, nessa altura, no Sporting, até o Bobby Robson ia. Passámos o Celtic 2-0, e nessa noite fomos jantar e depois praticamente a equipa toda foi à antiga “Kapital”. E o Bobby Robson chegou a uma altura e disse: “Isto é muito barulho para mim”. E foi-se embora (risos).

Não costumava fazer borgas com outros jogadores de vez em quando?
Nada. Eu admirava-me como é que havia jogadores que saíam à sexta e ao sábado. Como é que um jogador profissional de futebol sai a 48h de uma competição, em que é preciso estar com a parte mental e fisica no top? O que é que vai na cabeça de um profissional de alta competição que faz isso? É inadmissível. Depois há outra coisa. É que um jogador pode estar em casa e deitar-se às tantas da manhã. Para que é que vai sair e mostrar que está a sair? É fácil dizer que aquele jogador foi visto na noite ou que era meia noite e ainda estava a jantar. Eu posso estar em casa até às cinco da manhã a beber copos e embebedar-me. E o meu colega como foi jantar e saiu à meia noite do restaurante vai levar um processo disciplinar.

Falou no Bobby Robson. Era uma figura ímpar…
…Tenho uma história com ele. Eu já estava no Celtic e num jogo particular com o Barcelona que ele treinava já pelo segundo ano, quando me viu, deu-me um grande abraço, houve aquela comoção, porque ele era uma pessoa super sensível e dávamo-nos muito bem, e disse-me: “Espera aí, deixa-me ver uma coisa”. Meteu a mão ao bolso e tirou um papel velho todo enrolado e mostrou-me. Eu desenrolei e estava escrito com a letra dele, em português: “Nada como o primeiro amor”. Sabem a que é que ele se estava a referir? Ao Sporting. Foi o único clube que o despediu. E ele trazia aquilo com ele. Tinha aquele papel há cinco anos.

Há algum clube onde tem pena de não ter jogado?
Não. Tenho pena de não ter acabado no Sporting. Isso tenho. Eu tornei-me sportinguista e conheci a mística através de grandes senhores do Sporting, Vítor Damas, Rui Jordão, Manuel Fernandes, Virgílio, Pedro Venâncio… Estive 12 anos no Sporting, não foram 12 dias. Joguei com microroturas no jogo do Sporting-Celtic em que terminámos o jogo a ganhar com dois golos meus. Desde o minuto 18 que fiz uma microrotura e disseram: “Ah não é possível, se tivesses uma microrotura não conseguias continuar em campo”. No dia seguinte fui fazer a ecografia e tinha 12mm. Contra o Benfica, depois do acidente do Cherbakov, joguei os últimos 15 minutos com uma microrotura. O Mozer [central do Benfica] passava por mim e dizia-me: “Garoto, é melhor você sair”. E eu, nada. No último minuto faço um remate à meia volta e o Neno faz a defesa da noite. E eu disse-lhe: “Estás a ver porque não queria sair? Era o 2-2”. Fui operado à pubalgia, toda a gente em Portugal demorava seis meses a recuperar, e eu ao fim de 12 semanas estava jogar de inicio. Abdiquei das minhas férias para ser operado, para que quando o campeonato começasse eu estivesse minimamente em condições. Se calhar a maior parte dos jogadores teria dito: “Férias são férias, depois a meio da época se tiver dores então sou operado e estou o resto do campeonato de ‘ferias’”. Eu, não. Abdicava sempre.

Sente que houve falta de reconhecimento do seu esforço e trabalho em Portugal?
Mas isso é normal. Os povos latinos são assim. Já não me afeta. Sei viver bem com isso.

 

entrevista publicada no jornal Expresso