“Vais levar o equipamento do Sporting, pai?”
«Talvez. Decido mais logo»
“Vai ser bué da fixe!”

Este “vai ser bué da fixe!” refere-se ao treino. Um treino diferente, que assinala o Dia do Pai, convidando o progenitores a partilharem um final de tarde com os filhos, submetendo-se aos exercícios que eles enfrentam durante a semana. E, como não podia deixar de ser, o Sporting veio à baila. Vem sempre. Onde jogamos, quando jogamos, com quem jogamos e, seja em que modalidade for, a pergunta que espera a resposta mais importante de todas: «vamos ver?».

E é perante aqueles olhos a brilhar que penso, tantas e tantas vezes, acho que cada vez mais, naquela que é a minha missão enquanto Sportinguista. Enquanto protector e transmissor de um conjunto de valores dos quais me recusarei jamais a abdicar. Enquanto guardião de memórias, como aquela de poder ver os craques, os ídolos, a passar ao meu lado em direcção ao treino, naquele campo número dois com vista para a 10-A.

De cada vez que lhe conto isto, a minha filha solta um revoltado “granda sorte!”. E ela tem razão. Granda. Sorte. Tão grande que, se fechar o olhos, ainda sou capaz de escutar o som dos pitons, os célebres de alumínio que cravavam os nossos sonhos nos pelados. Os pitons daqueles que me inspiravam e me faziam querer ser jogador do Sporting. Não era ser jogador de futebol. Era ser jogador do Sporting (e, por isso, nunca consigo controlar o sorriso quando a ouço dizer que quer ser jogadora do Sporting).

Na altura dizia-se que tinha estilo entrar em campo a mascar pastilha. Sim, mais do que afastar os nervos, tinha estilo. E um gajo, armado em parvo, também queria ter estilo, nem que para isso tivesse que usar cortes de cabelo manhosos e entrar em campo a mascar pastilha. De alcatrão, está bem visto, provavelmente uma das maiores merdas que devo ter consumido ao longo da infância, vendidas no carrinho da desgraçada, plantado à porta da escola, capazes de deixar-te a boca toda negra, mesmo a pedir uma carcaça com tulicreme para apagar os vestígios de uns centavos mal gastos.

Bem melhor do que essas pastilhas, sabiam as bolas de berlim. Na praia, claro. Porque o meu Sporting também sabe a bolas de berlim comidas na praia. Não havia diários desportivos. Quer dizer, se a memória não me atraiçoa, quase que havia, pois iam alternando no dia em que eram publicados. A Gazeta, o tal jornal que oferecia um prémios às melhores claques, com a Juve Leo a ganhar sempre, e A Bola, então num formato inacreditável, tipo A2, e que te obrigava a um verdadeiro curso para aprenderes a lê-la contra o vento. Entre pingos de sal do cabelo molhado e dedadas de gordura das ditas com creme (também não havia a mariquice do sem creme ou da massa de alfarroba), o Sporting ensinava-me a ler e fazia-me sonhar.

Qualquer marreco que fosse anunciado como reforço, era imediatamente o melhor. Não havia internet, não havia youtube, não havia o partir de pernas antes mesmo de pisar a relva de Alvalade. Os números eram de 1 a 11. Sem nome. E para eternizares uma camisola sem nome dava o dobro do trabalho. Era esse o desafio: de bola de berlim devorada e páginas do Sporting lidas, passar o resto do dia de praia a jogar à bola, alguns com brindes como aquele final de tarde em que apareceu o Marinho Peres com os filhos e eu pensei que o golo de bicicleta que marquei me valeria um convite para treinar com o Douglas…

Não valeu o convite, mas alimentou-me as memórias. Memórias que passo. Memórias às quais me agarro sempre que me sinto a sufocar por um olhar o Sporting como um campo de batalha. Mais do que romantismo isto é, para mim, a tábua de salvação. Hoje. Sempre. Quanto o barulho parece ensurdecedor, desligo o telefone com wi-fi, desligo o computador, desligo a televisão esperta, atiro o comando para o raio que o parta. Mudo de sala. E lá está ela, sem comando, ecrã com a curva para fora, sinal vindo de uma antena manhosa, apenas dois canais.

Ligo-lhe um Spectrum, depois um Amiga500, para ajudar a passar a semana. E espero pelo sábado de manhã. A minha mãe foi à praça e vai trazer-me uma saquilada de bisciotos com gluten. O meu pai vai ter que esperar, até pôr a rodar um vinil que alterna entre o Zeca, a Lena d’água ou o Comanchero. Puxo o meu irmão para o meu lado e, juntos, ensaiamos aquilo que jamais percebemos ser uma espécie “aulas de canto para aplicar na bancada”.

Ao ritmo do Pedro Malagueta, cantamos que “lá em cima, há planetas sem fim”. E quando regressamos à terra, há uma campainha a tocar chamando-nos para ir para a rua e dando início a dois dias em que somos jogadores do Sporting a raspar joelhos no alcatrão, em que pedalamos furiosamente com camisolas listadas feitas pela avó ou patinamos sem rodas com sticks de madeira prensada acertando na bola que aparece. Dois dias que só terminam com o Domingo Desportivo, espaço onde se fala de futebol e onde tens que esperar uma eternidade para saber qualquer coisas das modalidades.

Este é um pedaço do meu Sporting. Aquele que me protege. Aquele que protejo. Aquele que, enquanto pai, quero que seja o da minha filha, mesmo que adaptado a uma versão 2.0. O meu Sporting, com sabor a bolas de berlim e a pastilhas de alcatrão. E tu, ainda te lembras a que sabe o teu Sporting?