Não sabemos o que mora na cabeça de um homem, qualquer homem, muito menos na alma e no que o tico e o teco conspiram, é impossível ler o que Josua Tuisova pensou quando soube da morte do filho de 7 anos, perdido para uma doença prolongada e ele em França, há meses concentrado com os restantes fijianos e a limarem-se para o que a sua pequena nação mais estima. Tuisova decidiu ficar, um pai que vê um filho a precedê-lo na sumida deste mundo optou por não viajar de volta ao país para o funeral e só podemos palpitar quanto aos motivos, mas um, o mais seguro de arriscar desde o desconhecimento, será a rendição de uma nação ao râguebi.

Onde se pergunte (ao Google) e se peça mais informações (também ao doutor mais requisitado da internet) surgem relatos de canalha a jogar à oval nas praias fijianas, de escolas fechadas para a criançada ver os jogos do Mundial e de um ministro a apelar a que os cidadãos fossem trabalhar no dia seguinte à vitória contra a Austrália, lá nesse arquipélago do Pacífico Sul ferve-se pela modalidade em que Josua Tuisova pode servir de exemplo, bastando olhar para ele: nem por isso alto (1,71 metros), é um petroleiro de músculo (92 quilos) armado de um arcaboiço trazido do berço pelos fijianos.

Este jogador dá a provar essa dureza de armadura a Manuel Cardoso Pinto, quase furando-o sem dó com uma placagem, imitando a implacável machadada que um companheiro já dera no 15 português e replicando a pancada que arrancou bruás das bancadas que o mesmo ‘Lobo’ levara ao chegar a um ruck para o tentar limpar. Tão maiores, mais brutos e com mais força, os previsíveis fijianos atiraram desde cedo essa supremacia física contra a seleção nacional, pedindo aos primeiros receptores de bola para esbarrarem nos menos corpulentos adversários só que nem por isso temerosos, nem um pouco.

Sofrendo tanto no contacto, com as Fiji a massacrarem nos espaços mais perto dos rucks, obrigando os avançados portugueses a placarem, e placarem e placarem, só abrindo a bola com mais passes quando já tinham umas quatro ou cinco fases de ataque na 22 metros adversária, Portugal aguentou-se com brio, jamais permitindo uma quebra de linha flagrante. Ultrapassado um arranque de jogo bastante faltoso, sem mêlées bem feitas e erros de manuseamento de bola a monte, período que às tantas até pareceu fazer as equipas compactuarem, durante uns minutos, em só trocarem pontapés direitos às mãos das duas linhas atrasadas, os ‘Lobos’ foram buscar forças à sua resistência.

Ao aguentarem as correrias cheias de trocas de pés, saltinhos e fintas curtas de brutos talentosos como o defesa Maqala e o ponta Habosi – cinco dos fijianos eram campeões olímpicos de sevens, a sua variante de râguebi predileta -, os portugueses cresceram nos últimos 10 minutos antes do intervalo. Com um par de turnovers e um Samuel Marques a pressionar constantemente nos rucks, qual rato atómico a atazanar a vida de quem ia ao chão para lhe roubar a bola, a seleção estabeleceu-se nos 22 metros adversários, teve Rodrigo Marta não alcançar por um triz uma bola na área de ensaio que o próprio chutava e, depois, Rafaelle Storti a quase, quase a lograr o toque de meta do outro lado do campo, ao receber um passe com o pé para ir perseguir a oval nas costas do adversário. Um fogacho da bola que tem residência mais fixa nas entranhas de um povo.

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STU FORSTER

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VALENTINE CHAPUIS

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LAURENCE GRIFFITHS

A sossegada primeira parte em arrelias para as áreas de ensaio, mas animada pela acérrima disputa e vontade das seleções em atacarem de trás, a todo o campo e com foguetes de espetacularidade (viu-se até o talonador Mike Tadjer, homem de molhada e das tarefas mais ‘feias’ do râguebi, a chutar com estilo uma bola para alinhamento), foi um jogo a fazer cerimónia, como se tal faltasse quando este era o derradeiro encontro de Portugal e Fiji no Mundial e com os ilhéus a precisarem de um singelo ponto para irem aos quartos de final na vez da Austrália. Quiçá por essa urgência, talvez por sentirem o abismo ao chegarem ao descanso com um 3-3 (penalidade de Samuel Marques), os mais necessitados de um resultado regressaram como os mais desorganizados.

Pouco tempo reatado havia quando Manuel Cardoso Pinto deu uma estreia ao jogo ofensivo português, teve a bola na sua metade e pontapeou-a para o alto de um desafio à gravidade enquanto Jerónimo Portela zarpou cá em baixo, o up and under foi reclamado espetacularmente pelo médio de abertura e Portugal reciclou rapidamente o ruck. Num ápice a oval estava nas mãos de Pedro Bettencourt, o gigante centro que dessa feita a pontapeou rasteira e forçosamente saltitante, lá indo o grubber matreiramente para as costas do último defensor fijiano, território há muito na mirada veloz de Rafaelle Storti. Embalado, o bigode português mais rápido marcou (46’) o seu terceiro ensaio no Mundial.

E a feiura do gelo que contrapõe o fogo esteve na sua pressa, porque três minutos volvidos e as Fiji empatariam de novo a partida, usufruindo na maneira tão sua um erro no contacto (jogador português largou a bola ao ser placado) para largar a fisga de um contra-ataque repentino à sevens cujo término coube a Levani Botia, nome relevante por ter dado a provar à sua própria seleção o azedume de um golpe sofrido logo após um que é desferido: aos 49’, acertou uma placagem na garganta de Rodrigo Marta e o cartão amarelo teve a cor de ouro aos olhos de Portugal.

Com tudo a seleção foi para cima das Fiji e massacrou-os no que a teoria desaconselharia, mas os portugueses ligam patavina às probabilidades, nunca quiseram saber, há quatro anos que esta fornada as desafia aos berros com Patrice Lagisquet e os jogadores agruparam-se num maul dinâmico assim que conquistaram um alinhamento para se empurrarem ordeiramente rumo à terra prometida do ensaio de Francisco Fernandes, o mais velho (38 anos) dos ‘Lobos’ que pôs a sua esperteza nas mãos ao ir buscar o toque de meta num ruck plantado quase na área de ensaio. A chuteira de Samuel Marques deu logo de seguida o 17-10.

JULIAN FINNEY – WORLD RUGBY

E é por demais apoteótico uma seleção concluir com sucesso um toque de meta, se for a nossa vira prazeroso e isto não é escrito por apropriação de subjetividade face a tratar-se de Portugal, qualquer nascido na terra de onde vem a sua seleção rejubila com feitos dos seus, mas, em Toulouse, os milhares de portugueses que encheram o estádio terão sentido qualquer coisinha a entrar-lhes no olho durante os 10 minutos seguintes em que os estoicos jogadores de Portugal resistiram com garras de fora a consecutivas investidas fijianos na sua área de 22 metros.

Umas atrás das outras, eles tentavam para esbarrarem em várias placagens que os empurravam para trás, contra rápidos assomos de portugueses aos rucks e as subidas clínicas dos ‘Lobos’ quando a bola era jogada pelas Fiji, pressionando quem a ia receber. Com a pressa e a urgência a tomarem conta dos matulões, viram-se mãos amanteigadas a darem faltas a Portugal, que agradecia para repelir a presença do adversário ao pontapé. Samuel Marques sublimou-se nesse papel. Só que esse período a ter de suster a resistência durante tanto tempo devolveria as consequências aos portugueses.

Os arfares, as mãos na cintura ou na cabeça, os corpos que se tardavam mais a rebolar para longe da confusão, a lentidão aqui e ali a levantarem-se de placagens feitas.

O segundo ensaio (68’) das Fiji pareceu aproveitar essa fatura para empatar a 17 pontos perante o alvo a que todos os sinais apontavam, os ‘Lobos’ pareciam de rastos, até faltas já faziam de demorarem demasiado a abandonarem o local onde tinham placado e a lenga-lenga de a seleção ruir fisicamente nos últimos 10 minutos de jogo, melodia pronta a tocar na concertina tão tocada nos embates recentes de Portugal contra este tipo de adversários habituados a outros râguebis, quase ecoava na estrutura do estádio. Quando Frank Lomani, o médio de formação, se pôs a chutar aos postes um par de faltas para, grão a grão, as Fiji comporem um pouco o seu papo, o jogo pareceu tragicamente encaminhado.

Mas não, não assim, não desta vez.

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CHARLY TRIBALLEAU

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LAURENCE GRIFFITHS

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STEPHANIE LECOCQ

Fartos daquele sabor de boca funesto e árduo de digerir que vem das palmas nas barbas e nas costas de quem perdeu ‘só’ por 20 pontos contra Gales e Austrália, de quem ‘só’ por detalhes que têm a ver com experiência, rodagem e experimentação a este nível não apanhou duas potências da oval na curva da surpresa, os ‘Lobos’ foram com tudo para os derradeiros dois minutos, os que restavam após a segunda penalidade fijiana. Havia um 17-23 a perseguir.

E fartíssimos de um sabor que não é mau e pode-se discutir a sua agridoçura – em que cabeças, afinal, cabe um desmérito ou crítica por se elogiar quem perde, sim, mas faz proezas em campo e na magreza do resultado com uma seleção meia amadora, vinde de um país inteiramente amador no râguebi? -, a seleção caçou o pontapé de ressalto de Samuel Marques para reiniciar o jogo, impelidos pela oportunidade que findava, pela última amostra que podiam dar deles. E num ruck encostado à linha lateral, a inteligência ligada à corrente de Rafaelle Storti reinou epicamente.

O ponta foi pronto a pegar na bola e correr, ele sprinta com tudo ao longo da linha e quando olhou para o lado estava o costume igualmente tão português em ter nos pontas os opostos que se atraem no seu râguebi, ao rodar a cabeça Storti viu Rodrigo Marta nem a um metro e passou-lhe a bola com que o 11 saltou, de braços esticados, para um voo a pique. E como ao malogrado Nuno Sousa Guedes (fraturou o antebraço e não esteve no campo) no jogo contra a Geórgia, a história voltava a pender sobre um pé direito – um habituado a chutar numa bola com toneladas de peso.

Como no play-off que deu o Mundial a Portugal, o pontapé de Samuel Marques esgueirou-se por entre os postes e aquelas peculiares e estranhas coisas que entram para os olhos dos adeptos portugueses nas bancadas arrombaram-nos, de vez, nem um minuto depois, quando Jerónimo Portela se virou para a própria área de ensaio e fechou, também com um chutão de bola para longe, a partida. Com o último apito veio a primeira vitória portuguesa em Mundiais de râguebi. E as comportas das barragens das lágrimas abriram-se por todo o lado.

 

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JULIAN FINNEY – WORLD RUGBY

Enquanto quem torcia no estádio chorava, os jogadores corriam que nem loucos pelo relvado. Alucinados de felicidade, trocaram abraços, encavalitaram-se no relvado e também as suas caras tinham choro. Portugal parecia ter acabado de ganhar o Mundial, e ganhou.

Os ‘Lobos’ conquistaram o seu Mundial em Toulouse.

Eles choraram todos, a alegria também é do mais virulento que existe e contagiou-se. No relvado, os jogadores entoaram o hino com os adeptos e lá em cima, na tribuna, Patrice Lagisquet abraçava os seus adjuntos e um feito injetou de renovada energia todo o elemento da seleção nacional que fez 200 placagens contra os matulões das Fiji, que perderam com algo para festejar: o ponto bónus defensivo deu-lhes a qualificação para os ‘quartos’, eliminando a Austrália, anfitriã do próximo Mundial. Feita a história portuguesa, a alheia escrevia-se ali também.

O próximo torneio será em 2027, lá chegaremos. Neste, Portugal deixou oito ensaios (foram quatro há 16 anos), a inédita vitória somada a um empate e um par de derrotas com 64 pontos feitos e 103 encaixados, melhor do que a Geórgia que personifica a crónica malapata de adversário para o râguebi nacional e ficou no último lugar do grupo. O Mundial para os portugueses já seria belo, mas também há beleza nas coisas derradeiras e a vitória estava à espera.

 

CRÓNICA ESCRITA POR DIOGO POMBO, EDITOR DA TRIBUNA EXPRESSO