17 de Dezembro de 2016. Olho para mim, então com seis anos de idade, mão na mão do meu pai, mão na mão da minha mãe, cabelo enganchado com acessórios verdes e resquícios de uma birra por não ter podido vir equipada a rigor. Quem se lembrou de agendar a inauguração de um pavilhão, que parecia deixar as pessoas mais ansiosas do que uma criança quando termina o jantar de Natal, para Dezembro, não pensou, por certo, que o frio me impediria a mim e a tantas outras crianças de poderem ir à festa de calção preto, meias listadas e camisola verde e branca. Sim, porque eu tinha a certeza que todos aqueles meninos e meninas tinham feito uma birra igual à minha.

Não posso deixar de sorrir ao ver-me mergulhada naquela onda verde e branca. À distância de 15 anos, esse momento parece-me ainda mais mágico. Lembro-me da quantidade de vezes que o meu pai me levou a Alvalade, não porque fosse dia de jogo, mas para que pudéssemos ver o avanço da construção do pavilhão e daquilo que ele me foi dizendo que seria uma cidade pequenina só do Sporting. Contava-me que ali, naquele mesmo local, tinha havido um estádio muito antigo onde ele tinha aprendido a ser do Sporting para sempre. Era um estádio onde ele apanhava chuva e sol e onde havia bancadas só com lugares no cimento. Invariavelmente, eu acabava a perguntar-lhe se também podia ter uma almofadinha para me sentar nos jogos. Ele ria-se e continuava. Falava de uma pista de atletismo, falava de grandes ciclistas, falava de hóquei, de andebol, de futsal, de vólei, de basquetebol… Tudo ali, a olhar para aquele descampado onde ia nascendo algo. «Depois vamos poder passar aqui grandes dias», perspectivava ele com um brilho nos olhos ao qual, um dia, acrescentou algo que me ficou na memória: «debaixo deste chão tem estado aprisionada a nossa alma. Imagina uma carta dos Invizimals, a carta mais valiosa e poderosa, um Leão Rampante cujo rugido já fez tremer o mundo inteiro». Eu arregalei os meus olhos. «Posso ter essa carta, pai?». «Se gostares muito do Sporting, podes. Sabes, é por haver muita gente a gostar do Sporting que esse Leão é tão poderoso. Quando ele estiver à solta tu vais sentir, amor. E vais ter que ajudá-lo a lutar!».

E eu, pequenina, com cinco quase seis, guardei aquilo. Percebi que esse Leão era o que eu carregava ao peito, na minha camisola preferida que, por mim, até teria servido para o meu baptizado. E comecei a sentir que o espírito desse Leão estava mais vivo nessa tarde e noite de festa. Um mar de gente de todas as idades, em que os avós pareciam mais crianças do que os netos e os pais deixavam correr lágrimas como crianças que nem sabem explicar o porquê de chorarem. E eu já sem casaco, com a minha camisola do Patrício que era mais quente do que as outras e o meu pai a dizer-me que o outro gajo lá em baixo, o Benedito, era do futsal e era uma das pessoas que mais gostavam do Sporting. Vieram os jogadores do hóquei, vieram os do andebol, vieram os do pingue pongue, vieram os do karaté e de outros tantos desportos de combate, vieram as jogadores do basquetebol e as do futsal. No meio de tão grande desfile, foi anunciado o regresso do voleibol, masculino e feminino. Palma e mais palmas e eu a gritar que queria ir jogar vólei porque a mamã tinha jogado e eu queria ser como a mamã. E também queria futebol para ser como o papá.

A festa continuaria ali ao lado, no Estádio grande, como eu lhe chamava, algo a que o meu pai achava muita piada porque lhe fazia lembrar a história. Estava tudo tão próximo, ligado por um passeio cheio de memórias. E havia um jogo, jogo grande, para completar esse dia. Um dérbi, explicava-me o meu pai, naquela que era a primeira vez que eu ia ver o jogo mais antigo de todos. Agora ainda havia mais gente, que eu via passar enquanto me deliciava com um cachorro que arrefecia à velocidade do cair da noite. E esse movimento verde e branco aquecia-me a alma. Sentia um nervosismo que não sabia explicar. Mas que hoje sei. Hoje, dia 17 de Dezembro de 2031. Tenho 21 anos e cá estou eu, no Pavilhão João Rocha, no meu pavilhão, pronta a defender o meu Leão Rampante. A minha carta mais importante de todos os baralhos de Invizimals que, afinal, nem eram assim tanto coisa de rapazes.

Na bancada, os meus pais, os meus avós, os meus tios e o meu mano mais novo, que ainda esta manhã jogou com a mais bela camisola do mundo, vieram ver-me jogar, como é costume. O tempo passou rápido, desde o dia em que entrei neste pavilhão pela primeira vez. Foi a primeira de muitas, de tantas. Aprendi a rir, a chorar, a gritar por algo que é tão grande que nenhum de nós sabe explicar. No pavilhão e no estádio e também na rua, que, entretanto, o Sporting voltou a ter ciclismo. Festejei o meu primeiro campeonato com uma bandeira duas mãos cheias de vezes maior do que eu e na qual adormeci enrolada no caminho de regresso a casa. Depois mais um e mais outro, que já são nove nestes quinze anos. Vi o Sporting espantar a europa do futebol com uma equipa de miúdos, quase todos portugueses. Vi o hóquei, o andebol, o futsal, o atletismo e tantas outras modalidades encherem, cada vez mais, um museu que não me canso de visitar. Tudo isto me passa pela cabeça nos breves instantes que antecedem o início do jogo. De quê? Não vos digo, porque sei que alguns de vocês estarão também nas bancadas onde não sobrou um bilhete por vender e não quero estragar-vos a surpresa. Apenas vos digo que, de cada vez que piso este campo, sinto que o meu pai tinha toda a razão quando dizia «debaixo deste chão tem estado aprisionada a nossa alma. Imagina uma carta dos Invizimals, a carta mais valiosa e poderosa, um Leão Rampante cujo rugido já fez tremer o mundo inteiro».

Essa alma é agora minha. Tal como é tua. E não foi para ver-me com seis aninhos que me foi dada a possibilidade de viajar no tempo (embora, modéstia à parte, eu fosse mesmo uma pita com pinta). Foi para agradecer-te tudo o que tens feito para ajudar a que o rugido do Leão Rampante seja cada vez mais audível. E para pedir-te que nunca deixes de fazer tudo o que estiver ao teu alcance para tornares este clube maior. Esquece guerras e guerrinhas, esquece nomes. Porque tudo isto só acontecerá se todos se unirem em redor de um nome: Sporting Clube de Portugal. Queres que esta seja a carta mais forte do baralho? Então mostra que gostas muito do Sporting. E nunca te esqueças daquilo que eu nunca me esqueci: «é por haver muita gente a gostar do Sporting que esse Leão é tão poderoso. Quando ele estiver à solta tu vais sentir. E vais ter que ajudá-lo a lutar!».