Não sei se Jean-Pierre Jeunet assistiu à final do Euro, muito menos se o terá feito na companhia de Yann Tiersen, mas já lá vão umas cinco horas desde que o jogo terminou e, além de acreditar que são capazes de estar com uma cabeça tão grande que não passa no Arco do Triunfo, não deixo de pensar que a história desta partida tinha tudo para poder contar com eles na ficha técnica.

Que noite incrível a deste Sr. Portugal, país pequeno de gente grande, que mandou alguma dessa gente para França a fim de conquistar algo até então não conquistado. Eu torci o nariz, tu torceste o nariz, mas à medida que o filme avançava a crença ia aumentando. Pelo meio, um tal de Fernando, nome tão português que parece ter sido escolhido a preceito para o argumento (imaginem se o homem não se tivesse desfeito do bigode…), teve a ousadia de vaticinar que só voltava a casa depois do Euro terminado e que levava a Taça na bagagem. O momento foi olhado de ânimo leve, quase como se fosse o momento cómico da trama, mas a verdade é que, a cada novo acontecimento, a frase parecia fazer cada vez mais sentido.

E chegámos, assim, a Paris, palco onde tudo se decidia para este Sr. Portugal, país pequeno de gente grande, que mandou alguma dessa gente para França a fim de conquistar algo até então não conquistado. E para aqui chegar foram as “passas do Algarve” e mais um contrariar de provérbios populares como “o que nasce torto tarde ou nunca se endireita”, no fundo, uma preparação para o que aí vinha. Bastou esperar 8 minutos para ver Cristiano, o melhor do mundo, estatelado no chão agarrado ao joelho. Não havia “que sa foda” ao qual nos agarrarmos, porque o cabrão do Payet tinha arrumado o gajo em quem mais acreditávamos. Lágrimas dele, do Ronaldo, lágrimas nossas pelos olhos da mãe Dolores que deve tê-lo feito por todos nós. Pelos pessimistas, que disseram “já fomos…”, pelos optimistas e loucos por formas estranhas de olhar o futebol que disseram “se isto aconteceu é para ganharmos de forma ainda mais épica!”. Todos unidos num sentimento de angústia que só os “avecs” viveram com um sorriso (eles e o Messi, antes de falhar a tentativa de beber de penalti a sua latinha de mate).

Antes, Nani tinha desbaratado um belíssimo passe de Cédric, logo a seguir Rui Patrício defenderia de forma fantástica um cabeceamento de Griezmann e começaria a inscrever o seu nome como um dos melhores em campo (senão o melhor). A verdade é que Portugal tinha dificuldade em ter a bola, errava mais passes do que devia e cedia à pressão daquele poderoso meio-campo francês. A entrada de Quaresma permitira equilibrar a partida, com Adrien a receber a ajuda de Renato Sanches no meio, mas, ainda, assim, era uma dor de cabeça de cada vez que um tal de  Sissoko resolvia acelerar. Sim, o francês passava por toda a gente, mas esbarrava no número 1 da selecção portuguesa e ao fim de meia dúzia de valentes arrancadas o ritmo baixou e o jogo caminhou para o intervalo com menos intensidade e ao ritmo de um enorme apoio dado pelos portugueses espalhados pela bancada.

A França voltaria a entrar melhor e a pegar no jogo, remetendo Portugal ao papel de tentar defender o melhor possível. Não admira que à enormidade de Patrício se juntasse, uma vez mais, Pepe, bem acompanhado por Fonte e pela dupla de laterais, Cédric e Guerreiro, este último uma das figuras deste europeu. E neste “não marcas porque o Rui defende” ou na variante “não marcas porque falhas isolado” (Griezmann), o tempo ia correndo e o prolongamento parecia cada vez mais uma certeza.  Nani dava um ar da nossa graça com um cruzamento que ia virando remate e que ia traindo Lloris (o tal que os franceses acham o melhor redes do mundo)

Faltam dez minutos e falta colocar à prova o coração: mesmo em cima dos 90, Gignac ganha espaço na área e atira ao poste. Éder, entrado entretanto, sorri, como quem diz que o prolongamento está aí e que tudo vai mudar. E mudou, desde logo porque o avançado entrou neste 30 minutos complementares dando a Portugal a possibilidade de, com uma referência fixa, ir subindo no terreno. O árbitro inglês, seguindo a mesma cartilha de todos os que apitaram os jogos da selecção nacional, ia ignorando várias faltas, mas, ainda assim, este Sr. Portugal parecia cada vez mais confiante. Pepe fez milhões gritarem golo, na ilusão de uma cabeçada que, mesmo se entrasse, não contaria por causa do fora de jogo, e depois seria Éder a cabecear para defesa atenta do redes adversário.

Muda de campo, mas não muda de toada, com os franceses a perderem gás entre a falta de pernas e o medo de terem que enfrentar o Rui nos penaltis e com Portugal cada vez mais capaz de jogar em todo o campo. Matuidi ia dando porrada sempre que podia, Guerreiro respondia com um livre fantástico que deixaria a tremer a barra da baliza francesa durante alguns segundos. Estava dado o sinal. É que, logo a seguir, Éder usou o que tem de melhor, o arcaboiço, aguentou a carga do defesa, meteu a cabeça em baixo e rematou com um movimento corporal como só ele conseguiria rematar. E, de um momento para o outro, 11 milhões de pessoas abraçavam-se num grito de golo tresloucado, provocado por aquele golaço inesperado.

E o raio do tempo que depois se fez longo, como se os relógios fossem controlados por aqueles que apelidaram de nojento o trabalho deste Sr. Portugal. Mas nessa altura, já João Mário, sempre com aquela cara de quem está quase a rir, mas não ri, dizia ao Pogba que para lhe tirar a bola só em falta. Já Nani e Quaresma tinham espaço para arrancadas com nota artística. Já William Carvalho explicava ao mundo a vantagem de ter quatro pulmões, de saber estar sempre no sítio certo e de usar bigode. Obviamente que tinha que haver um bigode nesta história. Afinal, esta é a história do Sr. Portugal, país pequeno de gente grande, que mandou alguma dessa gente para França a fim de conquistar algo até então não conquistado. E que, de forma mais sofrida do que bonita e sem a delicadeza de uma Amélie Poulain, encontrou o segredo para, atingindo a sua própria felicidade, espalhar felicidade por uma nação valente que já há muito a merecia.