É dos assuntos menos discutidos e no entanto raros serão tão importantes de reflectir: para que serve o desporto?

Historicamente, o desenvolvimento da actividade física era essencial. A sobrevivência dependia muitas vezes da destreza, da força ou da rapidez. Muito mais tarde os Gregos elevariam a preparação para a guerra e o culto do corpo a outro nível, nas Olimpíadas da antiguidade nascia a espetacularidade do desporto. Honravam os deuses e sobretudo alcançavam a glória de serem os melhores em algo. Nascia a competição.

Muitas centenas de anos depois o único deus venerado é o dinheiro e a glória mede-se em fama e os proveitos que a mesma permite. A ideia de desporto esconde-se por detrás do amadorismo. O topo, a glória, o profissionalismo, já não compete para honrar ideais ou congregar valores. É uma corrida ao dinheiro à escala planetária. Para muitos “desportistas” o único compromisso válido é com os milhares ou milhões que poderão amealhar numa década ou pouco mais. Venha de onde vier (patrocinadores, investidores, empresários, empresas, clubes, marcas, governos) a primeira e única prioridade é o dinheiro.

Na retórica liberal, uma coisa vale o que alguém paga por ela. O desporto e os desportistas foram literalmente comprados e porque existem muitos maluquinhos como eu que de bom grado passam horas a ver vários desportos, foram e são comprados a troco de fortunas. Se há público, há marcas e onde há marcas, há muito dinheiro. Muitos observam esta equação como completamente funcional e inquestionável. Eu tenho muitas reservas quanto à sustentabilidade de algo que cada vez mais serve de cartaz ao pior que o ser humano é capaz de fazer ao seu semelhante, o pior que um ou milhares de seres estão dispostos a fazer para se autodeclararem os melhores em algo. E não falo só do que se passa durante a competição, mas principalmente de tudo o que a rodeia.

Evoluímos? Não. Regredimos. Perdemos o respeito pelo adversário, pela adversidade e pela competição. Vale tudo para vencer, vale tudo para espremer a teta dos euros, dólares ou rublos. Já não há clubes, países ou torneios. Há apenas o caminho mais curto para deixar o “inimigo” para trás e isso pode passar muitas vezes por humilhá-lo, enganá-lo, mudar as regras, subvertê-las, encontrar alianças ou esquemas incriminatórios e difamatórios. Ninguém se atreve a questionar o status quo deste monte de cacos éticos, esta amalgama de interesses e negócios, este circo que se monta diariamente para nos fazer acreditar que os melhores vencem, que os mais justos e sérios não são “comidos de cebolada” pelos mestres dos truques, pelos mestres a repartir os euros pelas aldeias de poder cada vez menos credíveis.

O que é hoje a FPF? A Liga? A UEFA ou a FIFA? Órgãos respeitados? Um conjunto de pessoas de altos valores e padrões morais? Sérios profissionais com espírito de missão que tentam levar os ideais desportivos para servirem de exemplo às gerações actuais e futuras? A resposta tem sido dada através dos escândalos, através das disparidades, do “lavar de mãos” perante o caos.

Alguns de nós nada suspeitam de um desporto que suscita mais ódio do que respeito pelos seus rivais. E a culpa é de quem é mandatado para que tal não aconteça. A culpa também é de quem instiga esses sentimentos. A culpa é de quem impunemente encontra esquemas paralelos ao desporto para vencer mais dos que os outros.

Muitos de nós ficaram escandalizados com o castigo de 113 dias ao Presidente do Sporting. Eu concordo com o castigo. Leio as declarações que levaram a essa punição e revejo-me integralmente no que elas encerram. Não há mentira alguma, não há falsas acusações em nenhuma linha proferida por BdC. Mas a verdade e a crítica justa não fazem parte desta gaiola de ilusões e portanto deve ser castigada, a ditadura da imoralidade e da injustiça está assente no pressuposto de que tudo está bem, tudo funciona perfeitamente, todos são justos e isentos, ninguém desvia dinheiro para paraísos fiscais, ninguém está a servir de marioneta de ninguém. Como se atreve BdC a questionar este paraíso chamado futebol português? Como se atreve a levantar questões sobre a idoneidade de Vitor Pereira e as pressões sobre os árbitros? Como se atreve a apontar o dedo a este arco-íris chamado “hegemonia do Benfica”?

Cada vez menos se entende o que é o desporto. Faz cada vez menos sentido falar em honra, respeito ou ética. O problema salta aos olhos de todos e no entanto fingimos todos que entre os pingos desta chuva ácida que nos corrói, o desporto encerra ainda beleza, justiça, verdade. Exigimos pouco ou nada dos responsáveis. Renovamos Gameboxes, pagamos mensalmente as quotas, batemos palmas à Selecção de Todos Nós que Nos Chamamos Mendes. Não questionamos ninguém. Baixamos a cabeça e deixamos que continuem a esventrar os valores que tentamos passar aos nossos filhos. Isto é sustentável?

*às quartas, o Leão de Plástico passa-se da marmita e vira do avesso a cozinha da Tasca