A mais recente promessa de Vieira de construir uma equipa assente na formação, para poder competir por grandes proezas a nível europeu, além de quimérica (mais uma) encerra uma nuance a que devemos prestar atenção, pois como clube com grande tradição formadora, o Sporting tenderá sempre a desejar o protagonismo da sua capacidade de fabricar novos talentos.

A quem acompanha atentamente os mandos e desmandos do futebol português, não terá escapado de certeza absoluta o forte investimento do Benfica em infra-estruturas e corpos técnicos. A meu ver essa aposta começou com o ângulo errado, sobretudo porque era o cumprir de uma promessa propagandística e não um verdadeiro projecto. O início desse ciclo apanharia em final de formação alguns jogadores como Cavaleiro, Bernardo Silva ou Helder Costa e foi fácil, construir em cima da especulação de Mendes, a ideia que o Benfica tinha já uma máquina de formar craques em pleno funcionamento. Não tinha.

Mas está mais próximo agora. Resultado de uma aposta continuada e de uma constante abertura do plantel principal, o nosso rival encontrou um modelo que nunca lhe tinha sido confortável assumir. Não descobriram a pólvora, nem o modelo que definiram revela grandes segredos. Qualquer clube pode desenhar, implementar e obter sucesso na formação em Portugal. Para os grandes clubes a equação é ainda mais simples, pois são atractivos e melhores rampas de lançamento para os jovens que querem ser os Ronaldos do futuro.

Ao nível de quadros técnicos basta recrutar pedagogos, treinadores, psicólogos, preparadores físicos, todos com facilidade em definir o seu foco de trabalho no crescimento e desenvolvimento de jovens atletas. Quanto a estruturas, essencialmente trata-se de encontrar os modelos mais vantajosos de circundar bons campos de treino com alojamentos temporários e full-time. O resto é competência de quem administra e canaliza verbas. Quanto maior a aptidão das pessoas e estruturas, melhores serão os resultados da Academia. Se existe algum segredo e diferenciação, ele pode ser encontrado no scouting (que elege os atletas que entrarão e regularmente faz a filtragem dos que permanecem até ao último escalão) e na estabilidade do modelo definido entre e para cada escalão.

Se há uma coisa que eu sei, e todos podem comprovar, é que o clube que tem o melhor projecto e a mais firme aposta na qualidade do que forma, atraí os melhores talentos, atraí os que querem vingar a sério no futebol. O resto é, sinceramente, propaganda e frases feitas, coisas que não aquecem nem arrefecem a escolha de um pai ou a ilusão de um miúdo. Quem pensa que os melhores quadros ou talentos de uma Academia são os que se confessam adeptos do clube onde estão, pode parar de ler agora, pois desconsiderará todo o resto. O futebol de hoje é uma competição por espaço, tempo e oportunidade. O emblema é interessante, mas o trajecto é tão importante que até um miúdo de 8 ou 9 anos, bem acompanhado e sobretudo bem formado, tornar-se-á por incrível que pareça, perfeitamente apto a defender as cores do clube adoptivo e há milhares de exemplos disso mesmo do futebol actual.

Regressando à promessa de Vieira, uma coisa é ter um excelente projecto de formação. Outra coisa, bem diferente é ter sucessivos plantéis vitoriosos com base na formação. Isso é onde qualquer promessa pode falhar redondamente. Há tantas dificuldades nesta ideia, que basta enumerar 3 ou 4 para termos uma ideia de que, quer no Benfica, Sporting ou outro grande clube qualquer que lute por títulos, a formação deverá ter esse nível totalitário de protagonismo.

1/ Depois da Lei Bosman, todo e qualquer jovem atleta português deseja carreiras curtas nos grandes emblemas nacionais. Podem até ter o objetivo de cumprir uma ou duas épocas na primeira equipa sénior, mas quer existam títulos quer não, se existir interesse no mercado pelo seu passe é quase uma certeza que sairá. A diferença salarial é abismal e (o plano de Vieira falha absurdamente no próximo argumento), de facto, cumprir épocas de maturação num Liverpool ou num Sporting, por força da enorme diferença de competitividade das várias ligas, continuará por muitas décadas a ser muito desproporcional.

2/ A renovação de talento de um plantel que lute por títulos não pode ser constante, nem sequer programada. Cada jogador assume diferentes velocidades de afirmação e diferentes níveis da mesma. Esta “diversidade” torna qualquer modelo e cronograma demasiado complexo para que seja encarado como estático, e não tendo previsibilidade deixa de ser racional criar artificialmente ciclos. Não havendo regularidade antecipada nos ciclos é impossível assentar a projecção de vitórias. A formação dará ao plantel principal coisas diferentes, em momentos diferentes e nenhuma dinâmica de conquista pode ser assegurada com tanta massa volátil.

3/ Um atleta que lhe é barrada a saída no tempo em que deseja, pode resistir um ano, até dois, depois disso a sede do empresário e a sua própria vontade de prosseguir carreira desencadeará um processo de antagonização dentro do clube, a UEFA e FIFA há muito que fecham os olhos a este problema e enquanto não for equilibrado nada existirá a fazer. Invariavelmente, quanto maior o valor, maior o interesse, maior a probabilidade de não renovar com o clube formador. Não há qualquer forma de reter talento e mesmo que se invista em salários de forma épica, haverá sempre um clube mais poderoso tão interessado como o de origem na contratação de um jogador em fim ou mesmo livre de contrato.

O que penso ser viável, no contexto de grande clube português, é ter 2 níveis de scouting. Um para a deteção de talentos jovens, para ser trabalhado na Academia. Outro na eleição de valores prestes ou já aptos a dar qualidade no curto/médio prazo. Havendo estes dois pipelines a alimentar com qualidade o plantel principal, será sempre mais fácil suprir até erros ou dificuldades de afirmação de uma das origens. O que é perfeitamente desenquadrado como directiva é assumir a primazia de um contexto sobre o outro e afirmar que se vai construir um modelo de sucesso na Europa, fundamentalmente através da formação, isso de facto, e no cenário do futebol atual, é mesmo uma promessa vazia.

*às quartas, o Zero Seis passa-se da marmita e vira do avesso a cozinha da Tasca