Fora dos chavões que vão sendo utilizados para descrever e adjectivar esta “aposta” em Leonel Pontes, vale a pena recuar a junho de 2017, data em que o técnico terminou contrato com os húngaros do Debreceni e deu uma entrevista ao Expresso, mais precisamente à “nossa” Mariana Cabral.

Vive-se bem na Hungria?
Sim, vive-se muito bem. Debrecen é uma cidade pequena, com 250 mil habitantes, mas é a segunda maior cidade da Hungria, e há muita qualidade de vida. É uma cidade organizada, limpa, com muitas zonas verdes.

É mais calma do que Lisboa?
É bem mais calma do que Lisboa. É uma cidade universitária, com muitos estudantes, mais ou menos como Coimbra. É uma tranquila, organizada e com espaços muito cuidados, bons restaurantes, bons cafés, boa comida. Fiquei surpreendido, porque não estava à espera, pensei que fosse um país parecido com a Roménia ou com a Bulgária, mas não, é um país com caraterísticas diferentes.

Como é o Debreceni?
É um clube já com muitos anos de história, apesar do seu histórico em termos de palmarés não ser muito recheado, não é um clube com muitos títulos. Nos últimos 12 anos ganhou alguns, mas é um clube que está numa fase de transformação, em termos internos, porque ainda tem algum amadorismo naquilo que se refere ao futebol. Em contrapartida, tem condições extraordinárias: tem uma academia com oito relvados, todos muito bem tratados, cinco sintéticos de futebol 5, dois sintéticos de futebol 11, um ginásio e um estádio com 20 mil lugares, lindíssimo, enquadrado na floresta – chama-se mesmo estádio da floresta. E tudo isto subsidiado pela aposta que o governo tem vindo a fazer nos últimos anos no futebol. É de facto um clube com condições extraordinárias para trabalhar, pese embora esta fase de transformação não ter sido fácil, com muitas entradas e saídas de jogadores, não havendo uma ideia daquilo que o clube quer para o futuro. Houve também alguma falta de investimento privado. O presidente tem 75% das ações do clube e a cidade tem os outros 25%, e a relação é pouco saudável e prejudica o desenvolvimento ao nível do que deve ser um clube virado para o profissionalismo.

Por que razão saiu?
A nossa 1ª volta não foi boa. A construção do plantel e da época foi feita antes de nós entrarmos e não conseguimos trazer alguns jogadores que achávamos que iriam dar mais qualidade ao plantel. Tivemos então uma 1ª volta difícil, sem tradutor, ainda por cima. Tivemos bons jogos mas muitas dificuldades em fazer golos, fomos pouco consistentes nesse aspeto.

Melhoraram na 2ª volta?
No mercado de inverno entraram cinco jogadores e saíram 11. Os que entraram não corresponderam às expectativas porque não jogavam há muito tempo. A lista de reforços que pedi não foi a que me deram. Pensávamos que ficaríamos mais fortes, mas não. Fomos irregulares no campeonato. No final tivemos um mau resultado com o 1º classificado [2-5] e a direção entendeu que tinha de mudar. Foi um jogo complicado, sofremos aos três minutos, depois aos 10 minutos falhámos um penálti, depois à saída para o intervalo o nosso guarda-redes agrediu um colega e tive de fazer duas substituições e tirá-los. Estávamos a perder 3-0 e ainda conseguimos reduzir para 3-2 mas nos últimos minutos não conseguimos mais e acabámos por sofrer dois golos.

Repetiria a experiência?
Foi uma experiência muito boa, porque o nível de exigência e as incidências foram fortes, em 10 meses de trabalho. Não é fácil ser emigrante, especialmente na Hungria, mas saio com uma boa imagem, mas com pena por não termos atingido os resultados que queríamos.

Quando estive no Euro-2016, em conversa com jornalistas húngaros, eles diziam que as novas infraestruturas no país eram de alto nível, mas faltava o resto.
Há um detalhe importante: o povo húngaro é muito orgulhoso de si, das suas características, da sua cultura. E não é fácil para um estrangeiro trabalhar aqui, porque quando se contrata um treinador, contrata-se uma nova ideia de futebol e novas metodologias. E isso é uma entrave para mudanças, desde o início. Há uma tentativa constante de se intrometerem no trabalho do treinador e isso é uma luta e um desafio todos os dias.

Intrometem-se a que nível? Treinos, jogos…?
A todos os níveis. Nos jogos, nos treinos, contratações… Aqui os presidentes têm esta ideia de que por serem presidentes podem tomar decisões a todos os níveis e eu não permito que isso aconteça, por isso é que é uma luta e uma dificuldade, muitas vezes, em gerir os recursos humanos que temos. Mas foi uma luta ganha porque não abdiquei daquilo que são os direitos dos treinadores, nas decisões, nos problemas diários da equipa.

É fácil um treinador adaptar-se no estrangeiro com essa pressão?
É difícil. Primeiro, porque a língua é uma barreira muito grande. A maior parte das pessoas não fala outras línguas e o húngaro é uma língua difícil de perceber e de aprender. A maior parte das pessoas do clube não fala inglês e isso é logo uma barreira para transmitir ideias e ter uma mensagem mais clara. Depois, o facto de ser estrangeiro, com estes tipos de procedimentos locais, faz com que seja mais difícil construir algo consistente, já que há interferência constante e isto desgasta e pode fragilizar um treinador e uma equipa técnica. Portanto, nós adaptamo-nos, mas também passamos por momentos difíceis. Mas faz parte da vida de um treinador.

E não tinha um tradutor?
Não. Tinha um diretor desportivo que acompanhava diariamente a equipa e que desde o início tinha muita disponibilidade para ajudar na tradução. Também utilizei muitos meios audiovisuais, quadros… e grande parte dos jogadores percebe inglês, portanto falo em inglês com eles. Quando não há coisas percetíveis, os jogadores ajudam-se uns aos outros na passagem de informação. Claro que é uma barreira e no início não foi fácil.

Mas sabia dizer aquelas palavras chave “pressiona”, “remata”?
Em húngaro, não. Sei dizer poucas. Porque a maioria deles percebia essas palavras em inglês, aquelas fundamentais para o futebol. No início é claro que perdíamos mais tempo na explicação e eu levava o quadro tático para o campo para escrever e explicar melhor os exercícios. Claro que aprendi algumas palavras mas são poucas [risos].

Como é o nível médio do futebol húngaro? Já teve os seus tempos de ouro mas depois desapareceu, apesar de terem conseguido chegar ao Euro-2016, depois de muitos anos de ausência.
Acredito que daqui a uns 10 anos o futebol húngaro pode dar o salto do ponto de vista internacional, porque o investimento está a ser feito. O governo e a federação têm feito um grande esforço para dotar os clubes de estruturas profissionais, mas falta-lhes, de certa forma, o know-how daquilo que é o futebol de alto nível. Falta a qualidade individual para dar resposta a algumas partes da competição. No entanto, o que sinto é que as gerações novas, as seleções mais novas da Hungria, estão cada vez mais fortes, e isso é um indicador que pode ser importante no futuro. Infelizmente para o campeonato húngaro, mas felizmente para o futebol húngaro, há muitos jovens a saírem muito cedo para outros países. A seleção sub-17 esteve no Campeonato da Europa e a maior parte daqueles jogadores já está no estrangeiro – um deles até é jogador do Benfica [Kevin Csoboth]. Isso significa que está a haver um forte investimento de países aqui à volta – Áustria, Polónia, Alemanha, Itália – no jogador jovem húngaro e eles com outro tipo de futebol e de exigência podem criar no futuro uma seleção muito mais forte.

Isso também aconteceu em Portugal, mas agora com as Academias é menos frequente.
Sim, mas enquanto em Portugal os jovens saem com 19, 20, 21 anos, na Hungria saem com 15 ou 16 anos. É uma concorrência enorme entre clubes e agentes para recrutar os melhores jovens jogadores, não esperam que amadureçam na Hungria. Depois os clubes locais também não estão protegidos do ponto de vista legal e regulamentar no que diz respeito a esses jogadores – o futebol na Hungria ainda tem de dar um salto qualitativo também a esse nível.

A Academia do Sporting está prestes a fazer 15 anos e o Leonel foi um dos treinadores dessa altura. A criação das academias para os jovens fez muita diferença no futebol português?
Repare, quando as primeiras academias em Portugal foram construídas, e estamos a falar de Sporting, Benfica e FC Porto – o Vitória de Guimarães também já tinha uma estrutura com alguns relvados -, as academias no seu verdadeiro sentido da palavra já existiam na maioria dos países do futebol europeu. Inglaterra já tinha academias há 30 anos, França também, e por aí fora. O que aconteceu naturalmente é que, com as academias, o processo de treino melhorou, o acompanhamento dos jovens melhorou, a exigência sobre esses jogadores melhorou… Provavelmente formamos é jogadores um pouco mais formatados, mas mais preparados para o alto nível. As academias proporcionaram o aparecimento de jogadores com outro tipo de talento, virados para a equipa, para o alto nível. Se formos ver a seleção portuguesa, dentro do grupo de 23, 24, 30 jogadores, há uma percentagem elevada que já cresceu nas academias. Juntamente com isso, houve também alterações nos quadros competitivos, que passaram a ser mais competitivos nos sub-19 e sub-17, e depois as equipas B, que permitiram que os jovens adolescentes pudessem competir num nível competitivo mais elevado. A crise financeira também obrigou os clubes a apostar em jovens jogadores, muitas vezes por necessidade, e aí começaram a surgir novos talentos. Como sabemos, as nossas seleções jovens têm muito talento e há muita gente para chegar à seleção principal nos próximos anos. A seleção sub-21 é fortíssima, a seleção sub-20 está no Mundial, as várias seleções nacionais têm estado sempre nas fases finais dos campeonatos… Portanto, vêm aí gerações de grande qualidade já provenientes das academias.

O Leonel falava da formatação dos jogadores… Se tivéssemos atualmente um miúdo com as características do Ronaldo, iríamos estragá-lo?
Repare, um jogador como o Ronaldo, entrando numa academia, nunca poderá ser estragado. Só se for um jogador com um contexto social ou emocional que não lhe permita seguir o melhor caminho. O mais importante é que o jogador tenha talento. A partir daí, não se pode retirar esse talento ao longo do processo. Temos é de lhe dar espaço e liberdade para ele poder exponenciar esse talento, dentro de um conjunto de regras formativas daquilo que é o jogo, educação, disciplina… Mas nunca se deve retirar-lhe o talento. Muitas vezes o que acontece é que, desde muito cedo, começa a olhar-se para os jogadores não numa perspetiva individual, mas numa perspetiva de equipa, e, no fundo, na formação, as equipas servem para fazer evoluir os jogadores e não os jogadores para fazer equipas e ganhar campeonatos. Essa é uma questão importante, porque já se vê nos infantis e nas escolinhas uma competitividade, do ter de ganhar, com os treinadores muitas vezes a terem uma intervenção à profissional, quando eles ainda são crianças. Por isso é que digo que formatamos muito cedo. Mas a verdade é que temos formado bons jogadores. Mas será que vamos continuar a formar jogadores criativos? Com liberdade de expressão, como o Quaresma, como o Ronaldo, como o Nani… Não sabemos. Para já, não se vê jogadores com essas características.

Esses três que mencionou foram os melhores que já treinou?
Felizmente, tive o prazer de treinar jogadores de grande talento. Com talento individual, que se expressavam com liberdade e faziam a diferença do ponto de vista individual dentro das equipas. Realmente Ronaldo, Quaresma e Nani tiveram uma expressão extraordinária, mais o Ronaldo, mas o Quaresma e o Nani também. Mas também tive jogadores de grande qualidade humana e de grande qualidade tática, como o João Moutinho, por exemplo, com uma maturidade no jogo que é difícil de encontrar. Todos eles quando chegam têm um talento. Uns físico, outro tático, outro técnico… e há jogadores quase completos, com muito rendimento.

O Ronaldo, por exemplo, era um extremo com um talento técnico e agora é um homem de área, completamente diferente.
Sim. A única coisa que não mudou foi o rendimento do Ronaldo, porque esse têm-se mantido ao longo dos anos e tem sido incrível o que ele tem vindo a fazer. Agora, mudou a sua forma de jogar e mudou, penso eu, do que tenho observado, para melhor. Tornou-se um jogador mais maduro no jogo, mais ligado à equipa, em que começa a usufruir mais do trabalho da equipa do que do seu próprio trabalho individual. O que quero dizer com isto é que, antes, o nível de performance que ele tinha estava muito ligado ao desequilíbrio individual, de 1×1, 1×2, bolas metidas no espaço e ele driblar e rematar de fora da área… E neste momento ele está a finalizar dentro da área, perto da baliza, e a corresponder a jogadas muitas vezes trabalhadas pelos colegas. O grande incremento foi a qualidade da movimentação dentro da área, a qualidade da ligação com a equipa, no processo ofensivo, com melhores decisões, e o aprimorar cada vez mais as suas ações técnicas de finalização dentro da área. Tudo isto tornou-o um jogador diferente. No passado, jogava da esquerda para dentro, para o espaço central, e hoje é um jogador livre no ataque, mas a sua predominância de movimentos no espaço é dentro de área. E a esse nível ele está no topo. Em termos de movimentação, de movimentos em espaços curtos, diagonais curtas nas costas ou na frente de adversários, capacidade de impulsão, sentido de oportunidade… Ele expõe todos estes predicados no jogo.

Não piora com a idade.
Não… O Cristiano é como o vinho do Porto. Vão passando os anos e ele está cada vez melhor.

Como é que foi tutor de Ronaldo?
O “tutor” foi uma expressão que foi utilizada pelos jornalistas na altura, nunca tinha pensado nessa expressão. Fui encarregado de educação do Ronaldo, como de outros jovens entre os 12 e 15 anos, e como encarregado de educação zelava pelo dia a dia deles, dava-lhes atenção, controlava e estava atento à escola, às questões educativas, tinha uma ligação direta com os pais, com os treinadores… No fundo era acompanhar os jovens. Claro que é um orgulho ter podido fazer parte do processo de crescimento do Ronaldo, assim como de outros, com quem mantenho a amizade até hoje. Era um trabalho árduo, exigia constante dedicação, estar sempre perto do acontecimento, e controle de muitas variáveis ao mesmo tempo, porque eles eram vários e isso era um grande desafio para mim na altura, até porque eu também era muito novo.

Tem saudades da formação ou prefere o futebol sénior?
Como os jogadores evoluem, nós também vamos evoluindo. Claro que não posso esconder que foi um orgulho enorme trabalhar na formação, conhecer aquilo que deve ser o processo evolutivo, perceber os erros que se cometeu. Mas depois tive a sorte, depois de trabalhar com eles muitos anos enquanto jovens, trabalhar com eles a alto nível, no Sporting e na seleção nacional, e aí é que se percebe onde é que se falhou. O que se fez de bom e de mal, o que devíamos ter melhorado antes.

Por exemplo…
A vários níveis, ações que não potenciámos. Jogadores que eram muito fortes com o pé direito mas nunca foram fortes de pé esquerdo, jogadores que cruzavam mal e não melhorámos isso, jogadores que finalizavam mal… Também em termos mentais e emocionais. São estes aspetos que em alguns momentos foram descurados. Formação é, como se diz, um processo formativo, potenciar as melhores qualidades e melhorar as deficiências para atingir um nível de excelência como profissional. Se são reconhecidas deficiências aos 12, 13, 14, 15 anos, temos de trabalhar nelas para que o jogador atinja o nível de excelência quando chegar a profissional.

Tendo começado como adjunto e agora sendo principal, há comparação possível entre as duas funções?
Não, há uma diferença muito grande. Aliás, do ponto de vista teórico, para quem está de fora, naturalmente que isso é visível. Mas isso ainda é mais evidente para quem está dentro do processo, porque o grau de responsabilidade é totalmente diferente. O treinador tem de assumir um papel global, com várias equipas para gerir: jogadores, equipa técnica, staff, jornalistas, direção… Cai tudo sobre o treinador, mas claro que sempre dentro de uma lógica de trabalho coletivo numa equipa técnica.

Ou seja, como adjunto do Paulo Bento estava muito mais descansado.
Naturalmente que sim. É um papel de coadjuvar, potenciar, sugerir, seguir diretrizes, pensar… Mas tudo passa por aquilo que são as ideias e as decisões do treinador, o adjunto tem de seguir esse processo e colaborar da melhor forma.

É um risco muito grande ser treinador em Portugal, hoje em dia?
Há risco em muitas profissões e nesta creio que é ainda maior, pela instabilidade que o treinador vive sempre. É um risco e um desafio. É exigente, não é monótono, requer uma constante adaptabilidade, uma constante atenção a muitos aspetos, muita capacidade para tomar decisões… E depois a avaliação é sempre feita pelo resultado desportivo, pelo ganhar ou perder, e é por isso que é um risco. Enquanto um funcionário público pode fazer bem ou mal e às vezes essa avaliação quase não conta, para um treinador o que acaba por contar é sempre o resultado. Lamentavelmente, a avaliação do treinador muitas vezes só é feita por esse prisma, nunca se vê o lado do processo, do conjunto de jogadores que às vezes não têm determinado nível… Às vezes os clubes definem um caminho, mas para seguir por esse caminho é preciso argumentos.

Quer voltar a treinar em Portugal?
Claro que gostava de voltar a trabalhar em Portugal. Tenho conhecimento e experiência para isso.