As recentes declarações do treinador da equipa feminina de voleibol do Sporting Clube de Portugal (S.C.P.), Rui Pedro Costa, seguem uma linha de pertinência pouco comum na realidade do voleibol português. A propriedade dos assuntos que foca advêm de uma realidade que bem conhece ou não fosse este um treinador que desde o inicio da década de 90 vem treinado equipas de mulheres e que com o passar dos anos acumulou experiências e vivências que lhe permitem fazer este tipo de inferências.

E esse mérito é-lhe reconhecido por grande parte dos seus pares que se revêm no seu discurso crítico, mas ético e cujo reconhecimento público aconteceu no fim de semana passado quando a própria comentadora do Porto Canal elogiou a forma assertiva e acertada das suas palavras. Estranho seria se as suas mais recentes declarações não fizessem abalar o Palácio de Buckingham, aliás como já havia acontecido em 2020 após a célebre primeira jornada em plena pandemia que obrigou o Presidente da Federação Portuguesa de Voleibol (F.P.V.) a ter que prestar declarações ao jornal “Record” poucos minutos depois de terem começado a circular nas redes sociais fotografias de uma bancada repleta de adeptos. Adiante…

Uma das críticas apontadas pelo treinador do S.C.P recai sobre o modelo competitivo adotado. Que de facto, está mal implementado.

Este modelo competitivo foi implementado na época anterior, durante a pandemia, apenas para a I Divisão masculina. Uma das primeiras críticas apontadas pelo S.C.P. foi exatamente jogar-se sem objetivo. Ser primeiro classificado ou oitavo classificado era igual. E retirava por completo a verdade desportiva. Clubes de maior dimensão com responsabilidade social, com códigos de ética e de conduta, cujos valores e ideais são partilhados por milhares de pessoas não podem não deixar de ser competitivos desde o primeiro momento. Devem estar preparados desde o primeiro dia. A ética e a moral assim o obrigam.

Naquele momento em que a F.P.V apresentou este modelo, todos os clubes foram convidados a enviar os seus contributos e comentários. Não se sabe quais foram. A informação recolhida não foi sujeita a debate ou análise pelos interessados: os Clubes. Quando a F.P.V. decidiu implementar o mesmo modelo à I Divisão feminina, voltou a acontecer o mesmo. Os clubes não foram ouvidos.

Não deixa de ser curioso que apenas e só agora se levantem questões éticas, morais, de mérito desportivo, de cacofonia, de todos os males enfermos em que está mergulhado este malfadado modelo competitivo. A minha memória de elefante não me atraiçoa. Em sede própria e no momento oportuno poucos foram os que falaram. E não foram os de agora. Fica para memória futura.

As jornadas duplas vêm sendo contestadas de algum tempo a esta parte. Não fazem sentido. Não têm lógica. Sobrecarregam as equipas. Foram abolidas das principais e mais competitivas ligas do mundo, Lega Pallavolo Serie A Femminile (Itália), Superliga Russa, Tauron Liga (Polónia), Misli.Com Sultanlar Ligi (Turquia), Ligue A Féminine (França), Superliga Feminina (Brasil). E esta, hein?

Nos primórdios do século XXI, existiu uma regra que durou um ano. A regra dos sub-21. Todas as equipas da I Divisão masculina tinha obrigatoriamente de fazer alinhar em todos os jogos e pelo menos durante um set um jogador português com menos de 21 anos de idade. O objetivo era proporcionar tempo de jogo a jovens atletas portugueses. Na prática, grande parte deles jogou menos de 1 minuto. O tempo que decorria entre o serviço que efetuavam e o final do “rallye”. Afortunados os que sabiam servir. Acumularam minutos de voo rasante ao chão.

Estava o século XX prestes a terminar – e segundo alguns o mundo a acabar – quando em Portugal se deu, não um baby boom, mas um fenómeno que para este efeito iremos chamar, lady boom mais tarde rebatizado money boom. Concentremo-nos no primeiro.

O lady boom fez aumentar exponencialmente o número de praticantes de voleibol do sexo feminino. De tal maneira que todos os anos brotavam novas equipas. E continuam a brotar. No entanto, o número não revela qualidade. Revela quantidade. De forma clara e honesta, o número de atletas formadas nos clubes não chega para alimentar as equipas seniores. Porque em cada geração haverá uma, duas, no máximo três atletas com potencial. Potencial que nem sempre se confirma. Potencial negado pelas condições precárias de uma carreira profissional errante. Mas já lá vamos.

Voltemos atrás. Voltemos à quantidade. Existem duas realidades paralelas em Portugal: a dos clubes formadores e a dos clubes agregadores. Pela sua matriz, assumem desde logo objetivos diferentes. Os primeiros auto sustentam-se através das quotizações e no final os resultados desportivos caem para segundo plano. Os segundos gerem um orçamento na lógica da competitividade e dos resultados desportivos. Esta pseudo formação transformou o lady boom num money boom. O que não falta pelo país fora são clubes, academias, grupos e afins, que escudando-se no chavão “formação” cobram mensalidades faraónicas. Assumem, inicialmente, um modelo competitivo, que com o passar do tempo e face aos parcos resultados desportivos, se torna lúdico (pssst: é segredo). Mas faraónico e com direito a lista de espera à “Noma”.

A limitação de jogadoras/es estrangeiras/os não é novo. Poderá dizer-se recorrente. Mas e porque há sempre um mas, merece uma reflexão mais aprofundada. Se voltarmos a olhar para as principais ligas estrangeiras e às limitações de atletas estrangeiros vemos que:

Itália – 3 jogadoras do sete inicial (6 jogadoras de campo mais a líbero) têm de ser italianas. Cada equipa pode ter no máximo duas jogadoras da mesma nacionalidade;
Rússia – limite de 2 jogadoras estrangeiras por jogo e por equipa; Polónia – limite de 3 jogadoras estrangeiros em campo;
Turquia – limite de 3 jogadoras estrangeiros em campo. Máximo 4 jogadoras estrangeiras por jogo;
França – 1 jogadora do sete inicial deve ser francesa; Superliga Brasileira – 3 jogadoras estrangeiras por equipa.

O principal entrave à limitação de jogadoras estrangeiras é o papel secundário dado às mulheres portuguesas. Misoginia???

Dissecando: quantos clubes em Portugal são verdadeiramente profissionais permitindo que uma jovem atleta possa enveredar por uma carreira desportiva profissional? Estão os direitos laborais salvaguardados, nomeadamente a existência de um contrato, descontos legais, assistência e proteção da doença, ou até proteção na parentalidade? Quantas atletas portuguesas poderão afirmar que desde que enveredaram pela via profissional tiveram sempre estas condições asseguradas? Relatos de pagamentos por debaixo da mesa, em vales de combustível, em suaves prestações ou até o não pagamento são muito mais comuns do que se possa pensar.

Aliás, talvez resida aqui o atraso de 30 anos. Um atraso no reconhecimento das capacidades e a consequente contrapartida financeira. Falta estruturação. Federativa e clubística.

Acusar as atletas de não terem mentalidade competitiva é uma falácia, porque simplesmente não existe uma profissionalização da modalidade. Quem no seu perfeito juízo pode exigir a uma atleta uma dedicação exclusiva à prática do voleibol se no panorama nacional particamente todos os clubes são amadores? Pedir que se dediquem a uma atividade por menos do salário mínimo nacional? Pedir que se dediquem a uma atividade desconhecendo o futuro? Sim, estamos muito atrasados.

O caminho apontado passa pela profissionalização da Liga. Investimento em marketing e publicidade. Investimento na educação e sensibilização dos clubes. Investimento. Cada uma das 5 Ligas mencionadas anteriormente tem os seus mecanismos de controle e aplica sanções aos clubes prevaricadores. Casos há em que o Governo do país assume a responsabilidade do pagamento às atletas caso o clube não cumpra as suas obrigações. Por cá? Como diz o Carlão “Assobia para o lado”.

Algumas das obrigações dos clubes deveriam passar por:

  • Apresentação de certidões de não divida às Finanças e à Segurança Social;
  • Apresentação de garantia bancária ou demonstração de resultados de suporte à atividade;
  • Depósito dos contratos de trabalho ou outros instrumentos de contratação legalmente previstos na Lei junto da P.V.(atualmente a F.P.V. apenas reconhece os contratos individuais de trabalho e os contratos de formação);
  • Criação de um valor mínimo retributivo e um teto salarial;
  • Criação de uma Associação Nacional de Clubes:

 

Este poderia ser o ponto de partida para a profissionalização. Alguém se recorda quando foi a última vez que Federação Portuguesa de Voleibol, Clubes e Associação Nacional de Treinadores se sentaram para debater estas questões em conjunto? Talvez fosse produtivo uma vez que todos têm visões diferentes do caminho a seguir. Cooperação.

Por último deixo o meu comentário àquele que é sempre o tema mais controverso. Arbitragem.

Para os menos conhecedores, os árbitros de Voleibol são aqueles que de todas as modalidades coletivas de pavilhão menos recebem. Durante mais de 15 anos os prémios de jogo e os valores das ajudas de custo não viram refletidos o aumento da inflação. O subsídio de deslocação não cobria, por ex., uma viagem de ida e volta de comboio Lisboa-Porto ou vice-versa.

Atualmente, um árbitro da I Divisão recebe um prémio de jogo pago pela equipa visitante no valor de 50,00€. Os juízes de linha recebem 15,00€ (apenas I Divisão masculina). A este valor há que acrescentar as ajudas de custo. Um valor médio a rondar os 23,38€, desde que a equipa visitada e o árbitro residam a uma distância igual ou inferior a 30km. Cada clube tem de pagar à F.P.V. por jogo 165,00€ referente à comparticipação das ajudas de custo.

Fazendo as contas, em média, a F.P.V. dos 165,00€ que cobra por jogo aos clubes paga aos árbitros um total de 93,52€ repartidos pelos dois árbitros e dois juízes de linha. Se aos 165,00€ subtrairmos 93,52€ ainda sobram 71,48€. Multipliquemos este valor por 7 jogos (uma jornada simples) e a F.P.V. arrecada 500,36€ na I Divisão masculina.

Ora se na I Divisão Feminina não existem juízes de linha, a F.P.V. paga a cada árbitro, em média, 23,38€, num total de 46,76€ e ainda sobram 118,24€. Se multiplicarmos este valor por 7 jogos a F.P.V. arrecada na I Divisão Feminina 827,68€ por jornada. Se cada juiz de linha recebe de prémio de jogo 15,00€, cada jogo teria um custo acrescido de 30,00€. Se uma equipa realizasse um total de 23 jogos na condição de visitado, por época teria de despender mais 690,00€. Como alguém disse em tempos “É fazer as contas”.

Como podemos constatar o Voleibol português é propenso a falácias e silogismos. Serão as polémicas realmente fictícias ou estaremos perante um Cumbre Vieja?

 

ESTE POST É DA AUTORIA DE… João Fernandes (ex-team manager voleibol Sporting Clube de Portugal)
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