«Temos que viver por nós próprios e nessa base pensar no Sporting do futuro. O futebol profissional é quase o único veículo a gerar receitas e nas modalidades não é fácil arranjar patrocínios. As modalidades, quanto muito, conseguem, no máximo, equilibrar-se, mas não pagam o investimento num multidesportivo […] Mas se é esse o desejo dos sportinguistas (ndr. a continuidade da aposta nas modalidades, mesmo em prejuízo do futebol), assim será se o quiserem. Para o ano só o campeão se apura directamente e o segundo discutirá com o quarto classificado da Liga Inglesa, Espanha, Italiana, Francesa ou Alemã. Vale a pena interrogarmo-nos em relação ao que queremos ser. Não vamos vender ilusões. É bom olhar para o futuro com os pés assentes na terra e é isso que espero deste fórum».

Estávamos em Maio de 2008 e Soares Franco, então presidente do Sporting, deixava este “alerta” durante o 1º Fórum da Associação de Adeptos Sportinguistas. As modalidades, essa fatia tão brilhante da nossa história, eram colocadas no pote etiquetado com “descartável”, depois de, cinco anos antes, terem sido votadas a andar de casa às costas. Sim, recuemos um pouco mais, a 2003, data de inauguração do novíssimo Estádio José Alvalade, onde um projecto arquitectónico que ainda hoje me pergunto como foi possível ser aprovado deixava de fora a possibilidade de termos o nosso próprio pavilhão. Mais, deixava de lado a possibilidade de recuperarmos um passado de glória que parecia ter voado para parte incerta a bordo da velhinha e saudosa Nave de Alvalade.

Mas é a imagem dessa Nave, qual genérico intemporal de uma fantástica série chamada Era Uma Vez o Espaço, interpretado por Pedro Malagueta, que serve de ponto de referência a muito do que somos hoje. A muito do que vivemos hoje. O “quem somos?”, pergunta incontornável que nos confere identidade, tem como resposta um conjunto de predicados nos quais se inclui, sem margem para dúvidas, o ecletismo. As gerações com idade para serem meu pai ou meu avô, lembram-se de conquistas já compiladas em livros ou, quando muito, recuperadas em vídeos de outros tempo. A rádio e os olhos deram-lhes a ver um Sporting pujante, capaz de fazer rugir o Leão Rampante onde quer que ele fosse e que modalidade desportiva praticasse. Não será um acaso, o facto de ter sido do Sporting o 1.º atleta nacional a participar nos Jogos Olímpicos (António Stromp, em Estocolmo, em Julho de 1912). Tal como não será um acaso o facto do Sporting Clube de Portugal ser a maior potência desportiva nacional, com mais de 14 mil títulos conquistados, 22 taças europeias (em 4 modalidades distintas), 109 atletas olímpicos (com 8 medalhas) e um vasto conjunto de recordes nacionais, europeus e mundiais ainda em vigor. Tal como é o 2º clube europeu com maior nº de atletas olímpicos (109), em 10 modalidades distintas, ou como é o 3º clube europeu em número de presenças nas provas da UEFA e em número de taças europeias conquistadas (atrás do Real Madrid e Barcelona).

Das gerações mais maduras, passo para a minha, pessoal nascido entre 74 e 79, mais coisa menos coisa, tantos e tantos de nós crescendo e aprendendo a ser do Sporting a bordo dessa tal Nave estacionada dentro de uma central espacial chamada Estádio José Alvalade. Essas tardes e esses dias, em que se respirava Sporting na sua plenitude foram-nos tirados. E, sim, por mais que sempre tenha estado contra as medidas, pergunto-me vezes sem conta como foi possível aceitarmos que nos tirassem tanta coisa. A Nave, o campo de treinos, a 10-A, a identidade. Sim, o que sinto hoje, armando-me em adulto que quase nunca me apetece ser, é que quase nos roubaram a identidade. Pedirem-nos para escolher quais das modalidades seriam descontinuadas?!? Como foi possível aceitarmos isso? Como foi possível aceitarmos que nos dissessem que o clube empresa se tinha que sobrepor ao clube que aprendemos a amar? Terá sido à toa que o SCP chegou a desaparecer do topo do símbolo rampante?

Imagine-se, agora, o quão confuso deverá ter sido crescer para as gerações a partir de 1990. Mudanças de identidade, mudanças de estádio, modalidades espalhadas pelos subúrbios, muitas delas, qual pequeno ginásio de bairro onde treinava o Rocky, a tentarem sobreviver à custa do Sportinguismo que se recusava a perder identidade. Há toda uma história que como que foi esquecida e que, em tantos e tantos casos, nunca foi contada a essas gerações que cresceram a conhecer um Sporting que se procurava a si mesmo. Gerações para as quais o Sporting foi, até há bem pouco tempo, futebol e futsal, com tudo o resto a ter que ser procurado em documentos onde se guardam memórias. Gerações que, neste momento, se entusiasmam com o ressurgimento do hóquei, mesmo sem saber o que tanto de tão bom já fizemos de meias listadas enfiadas nos patins.

É neste ponto em que estamos. O ponto em que a saudade se encontra com o futuro. O ponto em que o Sporting de gerações anteriores se cruza com este Sporting que as gerações mais jovens acham ser uma novidade. Não, não é novidade. É a história a ser reescrita. E o que acho incrível é que, com base em questões pessoais, tantos Sportinguistas prefiram alimentar ódios a fazer parte deste momento único e tão importante. Ninguém é obrigado a simpatizar com outra pessoa. A gostar de outra pessoa. Mas o mínimo que pode e deve tentar fazer-se, é procurar despir essa antipatia e olhar para o que está a ser feito. A olhar para o trabalho. E só com muito má vontade poderá dizer-se que, neste momento, quem está à frente dos destinos do clube não trabalha para recuperá-lo.

Ignorar a constante melhoria do andebol, a pronta resposta à perda de qualidade no futsal que dominamos, a aposta renovada no atletismo, os constantes títulos em modalidades com menos visibilidade, a aposta nos desportos femininos, a segunda vida do hóquei, as correntes de ar que nos trazem ecos de um regresso do ciclismo e que nos deixam a sonhar com o basquetebol e com o vólei… ignorar tudo isto, procurando algo por onde pegar e por onde criticar, é triste. Não só é triste como nos enfraquece. Tenho, no entanto, a certeza, que essa minoria ou se calará ou será abafada como os assobiadores de serviço são abafados pelo apoio que vem das bancadas. Tenho a certeza que as várias gerações de leoas e leões, quando confrontadas com a pergunta “mas, afinal, onde é que tu vais querer estar enquanto se reescreve a história do Sporting Clube de Portugal?”, responderão que querem estar presentes.

Que essa presença seja massiva e clara é o que vos peço. Sim, o futebol, sempre, mas há tanto mais Sporting. Façam-se sócios, encham pavilhões, comprem gameboxes de modalidades! Aquilo que o hóquei tem feito é, nada mais nada menos, do que o lema que nos sustenta: esforço, dedicação, devoção e glória. E aquilo que vemos ser reescrito é, nada mais nada menos, que o recuperar do desejo de José Alvalade, em 1906: «Queremos que o Sporting seja um grande Clube, tão grande como os maiores da Europa». Esse grade clube existe, sempre existiu. Porque esse grande clube é muito mais do que futebol. Porque esse grande clube tem sobrevivido nas memórias, nos sonhos e nos desejos de todos os que sempre acreditaram que era possível reviver tempos que jamais se apagam e, mais ainda, poder reescrever esses tempos na companhia de filhos e netos que, imagine-se, crescerão a poder desfrutar dessas tardes e desses dias em que se respirava Sporting na sua plenitude.




Este texto foi escrito ao som do genérico da série Era uma Vez o Espaço. Aconselha-se a audição desse tema, não se responsabilizando a gerência pela possibilidade de passarem o resto do dia a entoarem qualquer coisa como «[…] Há uma nave no espaço, a subir passo a paaaaaasso,  Lá em cima, pode ser o futuro, Alegria, vamos saltar o Mundo, E a rir, unidos num abraço, Vamos contar uma história, Era uma vez o Spoooooooooooooorting! lalala lalalalalala lalala […]»