Olhou para mim e no seu olhar estava aquela criança que o tempo havia obrigado a esconder-se e a deixar de sorrir.
«Não sei o que dizer-lhe…», soltou, tentando controlar as emoções. «Não sei como agradecer-lhe…»
Mas, naquele momento, era eu quem tinha que agradecer. Agradecer a possibilidade de fazer um desconhecido sorrir. Agradecer a possibilidade de partilhar algo que nos une.
Claro que, como todas as histórias, esta também tem um início. Azáfama, compras, últimas prendas e últimas correrias. Uma pausa junto a casa. Que é minha e de milhões. Alvalade. Deixo-me respirar, vendo os envergonhados raios de sol apontarem ao local onde vai ganhando vida o nosso tão desejado pavilhão. A poucos metros de mim, alguém parece ter tido a mesma ideia, mas quando os nossos olhares se cruzam e, partindo do princípio que se trata de um Sportinguista, sorrio naturalmente como quem diz “qualquer dia estamos ali dentro a festejar”, reparo que o outro olhar carrega um mar de angústia. Incomoda-me. E deixa-me preso naquele limbo entre a vontade de perguntar se está tudo bem e o acanhamento de me sentir um intruso em vida alheia.
Felizmente, o impasse é quebrado quando ele resolve aproximar-se.
«Vai ser uma grande obra», atira.
“Não vejo a hora de estar pronto”, respondo.
«Sabe, estava aqui a lembrar-me do antigo Estádio de Alvalade e dos tempos que lá passei…» (Tenho vontade de abrir o baú das memórias, mas deixo-o continuar) «Vinha aqui todas as semanas, fosse para ver futebol, fosse para ver as modalidades, na Nave. Depois, construíram este e acabaram com o ecletismo…», completa, olhando para o nosso Estádio por cima do ombro.
“Quase acabaram”, atrevo-me a corrigir. “Leva o seu tempo, mas estamos a recuperar o tempo perdido”.
«Também quero acreditar que sim. Sabe, isto de acompanhar as coisas meio à distância é capaz de dar-me uma ideia meio coxa. Ainda por cima os jornais lá do café contam mais mentiras que verdades e um gajo tem dificuldade em filtrar».
Imagino-o alguém que teve que deixar o nosso país e que aproveitou a quadra para matar saudades de um local que nos rouba larga fatia das memórias de vida. “O senhor não vive em Portugal?”. «Vivo, até vivo aqui perto, mas…»
E o “mas” puxa um comboio de episódios que me atingem a 200 kms por hora. Os dias em que era sócio. A alegria de levar o filho pequeno, pela mão, a Alvalade. A crise na empresa. A falta de dinheiro. O divórcio. Os biscates. O filho que foi crescendo noutra casa, numa família reconstituída e com quem poucas oportunidades tem de falar. A fome. As ajudas. O pequeno quarto que é a casa que a reforma antecipada permite pagar. «Mas lá é tudo gente boa», diz-me tentando sorrir. «Apoiamo-nos uns aos outros. Olhe, hoje até temos um almoço solidário! Vai dando para manter alguma dignidade… só não dá é para alimentar este bichinho…»
Este bichinho é um Leão, penso para mim mesmo. E todos sabemos o quanto custa alimentar este Leão quando gostamos dele a sério. Estou envolto num turbilhão de sentimentos, quando ele me interrompe. «Então e o que traz este meu amigo por cá?». Digo-lhe que vim à procura de uma prenda de última hora. E pergunto-lhe se quer acompanhar-me à nossa loja. «Vou consigo, claro. Sabe, às vezes sinto-me meio envergonhado de lá entrar sozinho, porque é estar ali a olhar para as coisas e não comprar nada». Sorrio e penso para mim mesmo que aqueles 15 anos que devem distanciar-nos nas idades fazem toda a diferença na forma ligeira com que entramos numa loja, compremos ou não. E é já dentro da loja, da nossa loja, que tomo uma decisão. Dirijo-me ao balcão do centro de atendimento e contextualizo rapidamente a situação, deixando claro o desejo de que este Leão desconhecido volte a ser sócio, que as quotas, mesmo sendo as mais baratas, passem a ser debitadas na minha conta e que tenha o nome inscrito no pavilhão. Falta trazê-lo até ali. Invento uma desculpa mal amanhada, de que me esqueci de algo no carro e peço-lhe para guardar o meu lugar na fila.
Depois, é esperar. Raio de espera, cheia de dúvidas, na esperança de que ele não saia disparado depois de ter recusado o plano traçado. Não sei quanto tempo passa, nem me atrevo a olhar para o relógio até porque, neste caso, a demora é bom indício. Mas sinto-me aliviado, quando o vejo sair com um saco na mão.
Olhou para mim e no seu olhar estava aquela criança que o tempo havia obrigado a esconder-se e a deixar de sorrir. «Não sei o que dizer-lhe…», soltou, tentando controlar as emoções. «Não sei como agradecer-lhe…» Mas, naquele momento, era eu quem tinha que agradecer. Agradecer a possibilidade de fazer um desconhecido sorrir. Agradecer a possibilidade de partilhar algo que nos une. “Acho que um abraço chega”, respondo-lhe a sorrir. “Bem-vindo de volta à família!”
«Então e a prenda que queria comprar?», pergunta-me.
“Vou lá buscar agora”
«Olhe», retira um pequeno bloco e uma caneta do bolso. «Eu sei que as pessoas já não gostam muito de escrever assim, mas eu gosto e além disso não tenho telemóvel. Vou dar-lhe o número da pensão, para o caso de um dia querer ligar-me. Pode ser num daqueles dias em que os sócios não pagam bilhete», diz com uma gargalhada.
Só mais tarde, já a noite vai longa e as crianças sonham com o que receberam ou ainda vão receber, volto a pegar nesse papel. E é nesse momento que percebo que não cheguei a saber o seu nome. “isto foi como abraçar um desconhecido depois de marcar o golo da vitória na final da Champions”, penso para mim mesmo, comprovando que esta paixão que nos une se alimenta de milhões de nomes para formar um só: Sporting Clube de Portugal.
Feliz Natal!
28 Dezembro, 2015 at 1:59
Foda-se…
Que brutalidade!
SL