Podia vir hoje servir-vos uma avinagrada crónica do que se passou ontem à noite em Alvalade, mas o Cherba antecipou-se e muitos dos temperos que poderia usar já estão presentes na sua análise e a probabilidade do cozinhado vos saber a “repetição” seria tão grande como o número de espectadores que acorreram ao nosso estádio para mais uma jornada de Champions. Ao invés, olhei para a semana e resolvi abordar uma questão que me diz muito e espero que possa servir de reflexão a alguns: devem os clubes grandes doar a sua parte da receita aos adversários de divisões inferiores nos jogos que disputam da Taça (especificamente os que disputam fora)?

Eu sei que o assunto não merece à maior parte das pessoas mais do que 2 segundos de reflexão, mas sempre que se jogam as primeiras fases da Taça de Portugal a temática vem à baila e causa-me náuseas imediatas. A opinião pública divide-se como se fosse um caso de concordância ou discordância. Não é. Antes desta pergunta, deveríamos fazer outras, como: a) Porque não é a FPF a fazer a doação da sua parte? ou b) Porque devem doar a um 1º de Dezembro e não a um Tondela? ou mesmo c) Porque devem doar receitas como visitantes e não como visitados?

Confesso que a “caridade” desportiva é um assunto que tira fora do sério. Os clubes pequenos, de escalões inferiores, têm menos receitas e mais dificuldades…isso é mais que óbvio, mas porque raio devem os clubes andar a doar verbas a outros clubes? A FPF não é a entidade que reparte as receitas? Não é ela que “zela” pela proteção às divisões secundárias? Não é esta a instituição que tem por obrigação encontrar as melhores formas de financiar todo o universo do futebol? Então expliquem-me porque não se coloca antes a pergunta: “deve a FPF doar a sua parte da receita aos clubes de escalões inferiores nas eliminatórias da Taça de Portugal?”.

Não entendo. Não gosto. Acho hipócrita e demagoga a postura de “os clubes podem fazer o que quiserem”. Não, esta não pode ser a postura oficial da FPF nesta questão. A Federação Portuguesa de Futebol deveria desincentivar os clubes de fazer caridade e assumir, de uma vez por todas, que não defende que o seu papel seja substituído por acções de “caridade” a vulso e sem qualquer tipo de enquadramento. Doar receitas é mau princípio entre adversários e não entender esta questão é só mais um sintoma do universo de problemas éticos que a FPF não observa, não compreende, não resolve. A obsessão por orçamentos, contratos de patrocínio, marcas, shares, etc…tem feito com que a instância superior do nosso desporto-rei se desfoque do essencial – a sua ação de regulamentação e arbitragem entre os clubes, entre os jogadores e empresários, entre sindicatos e associações profissionais. A FPF virou “empresa” e perde-se em preocupações com o topo do seu “edifício”, diverte-se e passeia-se pela elite do futebol. E a base?

Enquanto se batem recordes de receitas e de somas de contratos publicitários, enquanto somos Campeões Europeus disto e daquilo, as divisões secundárias do nosso futebol estão cada vez mais decrépitas, pode parecer um contra-senso…e é. A verdade é que se sairmos do mundo do “profissional” e mergulharmos nas “ligas dos últimos”, as infraestruturas são as mesmas há 30 ou 40 anos e muitas das vezes o nível de gestão também. A sensação que dá é que os clubes e as competições que estão na base do nosso futebol congelaram a sua evolução e há apenas um universo de meia centena de clubes que se reveza nas subidas e descidas dependendo do maior ou menor atropelo do autarca da sua região às restrições de apoiar os clubes da terra.

Enquanto a FPF e a Liga crescem, enriquecem e navegam entre jantares e almoços com a alta roda das empresas e da política, os dirigentes dos clubes mais pequenos sustentam de “vaquinha” em vaquinha os equipamentos, os campos de jogo e as deslocações das suas equipas e muito importante, mesmo muito importante, não conseguem retirar de cima dos pais a missão de sustentar as suas camadas de formação. Isto é simplesmente ridículo, “terceiro-mundista”, bacoco, estúpido. De tal forma absurdo que um dirigente do Gafanha da Nazaré pode ter um ano de encargos mais que pagos apenas contando com parte da receita da eliminatória que disputou em Aveiro frente ao FC Porto. A questão não é se o clube primodivisionário deveria dar essa receita ao seu adversário, mas sim que será errado fazê-lo e é especialmente preocupante que tenha tanta importância no seu balanço financeiro.

Muitos de vocês poderão ver tudo isto como uma questão menor, mas lembrem-se que todos os “jogos da mala” têm uma origem, um ponto de partida cultural, sociológico e especialmente económico e que enquanto as pessoas que dirigem o nosso futebol fecharem os olhos aos “acordos” de menos importância, estarão muito mais longe de resolver acabar com os que desvirtuam os de importância máxima e que envolvem muito mais do que apenas boa vontade.

*às quartas, o Leão de Plástico passa-se da marmita e vira do avesso a cozinha da Tasca