Está frio.
Lá fora, acabaram as brincadeiras, com o Luís e a Mafalda. Os manos já estão em casa, a ajudar a mãe. E chegaram os avós. Aquele cheiro a hortelã-pimenta, e a tabaco de cachimbo do avô… A avó nem sei a que cheira, pois só me abraça e beija e aperta, e olha-me e ri.

A minha casa é uma casa de gigantes. Todos. Menos o papá, que se debruça para falar comigo, ou os manos, para me arreliarem com alguma partida. Ou a mamã, que me ajeita a coberta à noite, e aí é tão pequenina como eu. Eu não sou pequeno, atenção… Mas para os meus 4 anos, contados por uma mão ainda hesitante, faço o que posso.

A casa está diferente, parece mágica. A um canto da sala, brilha a televisão a preto e branco, e ninguém lhe liga. O avô brinca com os manos, a avó está na cozinha com a mãe, e eu passeio por toda esta magia. Chego-me à janela e só vejo, além da luz azulada dos candeeiros o meu reflexo nos vidros embaciados. Respiro para o vidro e desenho sonhos, um Pai enorme como um guindaste, uma mãe forte como uma árvore…

E o cheiro, o cheiro… Aquele cheiro… Canela, laranja, limão, erva-doce… Um toque azedo da levedura. O cheiro do vinho do Porto, e das aguardentes. Poalha que tudo cobre e assenta, que quebra ângulos nítidos desta casa e desta noite mágica. As velas ardem, e há risos, e conversas animadas… E o cheiro da carne a assar no forno, o alecrim, as pimentas… O cheiro do bacalhau e do alho, e dos coentros e de tudo…

Só me falta o meu pai. Disseram-me que os mais crescidos às vezes têm que trabalhar, ainda que prefiram estar em casa. Aquela resposta satisfez-me a curiosidade, e continuei a deambular por aquele lugar mágico, aquela minha casa irreal. O presépio, que ajudei a montar, com as figurinhas de barro, o castelo, a ponte com os pescadores… O presépio, com a vaquinha e o burro, o Pai e a Mãe… E com a manjedoura ainda vazia. E o cheiro da lenha queimada, pinho, azenha, oliveira. Lançam sobre os nossos sapatos cores de ouro, cobre e bronze. As chamas que dançam e inebriam ainda mais este ambiente.

Há uma rajada de vento frio, rápido. A porta abriu-se, e entrou uma figura grande, enevoada, que a principio não reconheci. Era o Pai. Corri para ele. O seu sorriso envolveu-me e apertou-me. Estava enfim a magia completa.

A seguir ao jantar de Natal, e a seguir à Missa do Galo, regressamos a casa. O Menino Jesus estava na manjedoura, tinha nascido. Nos nossos sapatos estão atulhados. Chocolates, revistas de banda desenhada, lápis de cor, um pijama quentinho, um avião de corda… Tantas coisas… Mas havia um presente, ainda embrulhado, em que ninguém tocava. Encorajaram-me para o abrir.
– Anda, é teu!

Estranhei, pois normalmente os nossos presentes ficam dentro do sapatinho. Rasguei o papel, era uma camisola listada, verde e branca. Tinha um leão ao peito. Sorri para o meu Pai… «É para mim?» Acenou-me afirmativamente. Tirou as camisolas que eu tinha, e vestiu-me a camisola nova. O meu pai pôs-me aos seus ombros, saltou comigo, correu e riu. Riamos todos, às gargalhadas…

Senti-me nesse momentos sentado aos ombros de um gigante… Hoje sei que não estava aos ombros de um gigante, estava aos ombros do meu Pai, estava aos ombros do meu clube, o melhor clube do Mundo. Essa camisola ainda a guardo, mas outras que entretanto me deram, fui oferecendo. Aos filhos de amigos, a crianças e familiares. A melhor prenda do Natal é darmos uma camisola a uma criança… E vê-la voar, sorrir e sonhar, aos ombros de um Gigante!

*às quintas, o Escondidinho do Leão aparece com uma bola diferente debaixo do braço, pronto a contar histórias que terminam num ensaio