Não preciso de nada“, diz-te ele, com mais de 70 anos. «É um dos que está há menos tempo a viver na rua», dizem-te aqueles que, diariamente, com as cores do Centro de Apoio ao Sem Abrigo (CASA), procuram levar algum conforto a quem, como o Sr. Hortense, faz da entrada de um prédio o abrigo que não tem. E a tua cabeça entra num turbilhão, porque por mais que aches que, sim, estás preparado, percebes que não estás e menos percebes a naturalidade com que te dizem que estar há quase dois anos na rua é estar há pouco tempo. E sorris, todo partido por dentro, mas sorris. Se eles sorriem, todos partidos por dentro e por fora, era o que faltava não retribuíres o sorriso.

Para trás deixaste outros. Cinco, dez, quinze, trinta. Não contas. São rostos que te fitam como quem fita alguém que não está habituado a ver por ali, perto de Arroios, a carregar uma enorme caixa térmica que carrega a única refeição quente de um dia frio. Dizem-te que precisam de sapatos. Dizem-te o tamanho. E camisolas, mas aí tu já não precisas anotar o número e vais ao carro buscar uma. Polar. Tão polar que queres acreditar que todo o frio vai ficar do lado de fora, principalmente se combinada com o saco-cama que carrega as muitas mãos cheias de almas unidas em torno de uma causa.

É tudo verde!“. Há quem goste. E há quem ainda consiga brincar com cores clubísticas, neste raio de estádio de cimento onde não há marcações e onde as regras são duríssimas. Tanto, que tens que piscar o olho a uma catraia de oito anos que se prepara para disparar o seu fervor leonino sobre alguém que não está preparado para isso e que ainda te diz «a vida é mágica!». É uma lição. Para nós, pais, e para ela, que percebe, definitivamente, que um sem abrigo não lhe faz mal, que se eles estão sem comer há horas ela pode esperar por jantar depois de dar-lhes de jantar e, prova das provas, que o croquete a quem piscas o olho desde que o viste te vai satisfazer muito mais quando te disser adeus da tua mão para a mão de quem to pede.

Por esta altura já tu desceste à Baixa e estacionaste numa Praça da Figueira onde os tuk tuks e os turistas levaram o sol. Tiras uma caixa e outra e mais outra, entre pão, fruta e bolos que sobraram e montas a tua “banca” de distribuição o melhor possível para responder aos apelos daquelas mãos que sabem esperar. Apenas te dizem o que mais gostam e dás por ti a pensar que até aqui o chocolate é rei. Dás por ti a pensar o quão melhor saberá este chocolate, esta tangerina, este pão, mais a refeição quente que alimenta tanta gente. Dizem-te “obrigado” e “por favor” e quando os olhas nos olhos tentas dizer-lhe o quão grato estás tu por poderes ali estar. Por deixares de sentir frio, por mais fria que esteja a noite. Por falares com olhares com a tua mulher e ambos seguirem os passos de uma filha que é a maior surpresa no dia daquelas pessoas e que lhes oferece um sentimento extra completamente absorvida entre o “eu é que dou a comida!”, “qual é o pão que quer?”, “olhe esta frutinha aqui bem crua!”, “já só há coissants e pão de deus” e as corridas felizes à carrinha que transporta “as camisolas e os sacos cama que deram os amigos do meu pai lá da Tasca!”.

E quando a comida acaba, sobra conversa. Diz que também alimenta. Que dá nome a quem ta pede. A quem ta dá. Há um José, vindo do Porto, e uma Rosa, que a ele se juntou cá por Lisboa. E há quem diga “atrasei-me, hoje… ainda tem alguma coisa?”. Nós já só temos pão, mas o José tem uma refeição a mais, das que parecia que iam sobrar, mas não sobraram. «Pai… porque é que ele deu a comida ao outro senhor?». “Porque é que nós viemos entregar os sacos cama e a comida?”. «Porque eles precisam?». “Exactamente…”

… Porque eles precisam… Hoje… Sempre… Que nos lembremos deles e das suas histórias, muitas delas com momentos de glória, quase todas elas escritas a esforço, todas elas a pedirem a nossa dedicação e vontade de transformar estas ruas em ruas feitas de Sporting!